Walter Boechat
Acaba de ser publicado o tão esperado Livro Vermelho, ou Liber Novus, como o chamou Jung. O livro terminou de ser escrito por volta de 1930 e na época o autor optou por não divulgá-lo devido ao seu caráter extremamente pessoal. Mesmo depois da morte de Jung, em 1961, sua família preferiu manter o livro oculto ao público em geral. Mas agora, depois de mais de dez anos de negociações e preparo, o livro foi lançado com grande sucesso no mundo inteiro.
Pode-se perceber grandes influências na composição do Livro Vermelho: o Zaratustra de Nietzsche, a Divina Comédia, de Dante Allighieri, o Fausto de Goethe. Todas as grandes obras da tradição ocidental compõe o universo cultural de Jung e o influenciaram de certa forma. Mas o Liber Novus é novo e originalíssimo em sua forma, na maneira de sua apresentação e também em conteúdo. Enquanto Nietzsche apregoou a morte de Deus, uma nova ética, a transvaloração de todos os valores, o Livro Vermelho traz a novidade do renascimento do Deus interior, da experiência pessoal do transcendente pela transcendência mesma das instituições. Enquanto Dante Alligieri realiza uma viagem interior de aprofundamento, personificando em Virgílio um guia para o mundo dos mortos, Jung tem múltiplos guias, sendo o mago Philemon é o maior de todos, aquele que centraliza o conhecimento intuitivo transcendente.
O livro tem começo em dezembro de 1913. Jung tem uma visão enquanto viajava para visitar uma parente em cidade próxima a Zurique. Vê toda a Europa coberta de um mar de sangue, com milhares de cadáveres boiando, do norte até a região sul. É uma visão terrível que se repetiu como um aterrorizador sonho acordado. Jung relatou essa visão em seu livro de memórias, dizendo que sentiu uma necessidade premente de compreender o sentido dela. De início pensou que ele próprio, Jung, estava sofrendo uma grave crise psíquica e que aquela visão dizia respeito talvez até a uma doença mental iminente. Só quando pouco tempo depois a Europa mergulhou na primeira grande guerra (1914-1918) com seus incontáveis mortos e o profundo sofrimento para milhões, pode compreender o sentido antecipatório de sua visão. Mas tornou-se claro para ele que as poderosas imagens que se desenrolaram a partir daí em fluxo caudaloso em fantasias e sonhos, falavam também de algo interno, uma profunda transformação interior. Todos essas mudanças interiores aconteciam paralelamente às dolorosas mudanças da cultura européia e mundial.
Em sua vida particular, Jung atravessava um período de mudanças radicais. Havia rompido com Freud afastava-se do movimento psicanalítico que se afirmava gradualmente em toda a Europa. Tendo sido o primeiro presidente da Associação Internacional de Psicanálise (IPA) e tendo colaborado intensamente para o seu desenvolvimento, rompia com a instituição. Aos trinta e oito anos, atravessava então uma típica crise de metade de vida, como ele próprio viria a chamar depois, período da vida marcado por intensas mudanças interiores.
Mas sou de opinião que é um erro considerar o Liber Novus um produto dessa crise de meia idade, dessa entrada na maturidade de Jung. Ao contrário, o Livro Vermelho faz parte de um brotamento espontâneo criativo que o acompanhou desde sua infância. Podemos acompanhar todo esse desenvolvimento criativo através dos sonhos e fantasias do menino e do jovem Carl Jung relatadas em seu fascinante livro Memórias, Sonhos e Reflexões (Editora Vozes).
sábado, 18 de fevereiro de 2012
Sérgio Britto e Jung
Walter Boechat
“E o Sérgio Britto agora virou Estrela...”
Paulo César Brito
Sergio Britto telefonou-me em 2005. Procurava em mim alguém que o ajudasse com os conceitos da psicologia de Jung para a peça Jung e Eu, monólogo de Domingos de Oliveira com a colaboração de Giselle Kosovski sobre Carl Gustav Jung que encenaria meses depois no CCBB. Encontrei Sérgio Britto por diversas vezes em sua casa em Santa Teresa para discutirmos os conceitos fundamentais de Jung, o processo de individuação, o inconsciente coletivo e os arquétipos. Nesses encontros pude descobrir um Sérgio Britto com um discurso vibrante, cativante, puro transporte, a magnética presença de um ator e diretor teatral de personalidade inigualável. Falei sobre os conceitos junguianos, Sérgio demonstrou a íntima convivência com esses conceitos, sua vida sendo plena expressão daquilo que Jung denominou processo de individuação; uma intimidade com os processos internos, uma convivência com as imagens interiores, um trilhar de caminhos tortuosos para a expressão plena do self.
Falou-me com intimidade sobre seus estudos de medicina, muito a gosto da família, mas distintos de seu querer mais autêntico. A poderosa vocação para o teatro já vinha emergindo como expressão do seu self criativo na faculdade, entre os disfarces médicos de sua persona... E contou-me finalmente como o Ator e homem de teatro brotou em sua plenitude e Sérgio pode então construir seu caminho próprio... Eu ouvia a tudo emocionado, constatando que o processo de individuação a que Jung aludira é ainda possível, embora bastante raro...
Sérgio contou-me suas experiências fundamentais. Como conviveu com o preconceito sobre sua orientação sexual e pode integrar em sua vida todos esses aspectos. Ouvindo-o pude perceber a sabedoria da idade avançada convivendo com a inocência e espontaneidade da criança. Parece-me ser essa a maturidade maior. A integração da homossexualidade não se deu sem sofrimento, como me narrou. Falou no rito de passagem do seu processo de individuação em sua tentativa de suicídio, feita de modo automático, cortando os pulsos, após bastante tempo tomando sol na praia de Copacabana. Só depois entendeu os desafios e significados maiores de seu gesto para a integração de sua sombra.
Comentou outro ritual de passagem importante: sua desilusão com a medicina. Ainda estudante, plantonista em maternidade, os médicos estavam ausentes durante a noite. (O que causava grande decepção em Sérgio). Aconteceu um parto emergencial, com apresentação de cócoras. Sérgio não sabia absolutamente o que fazer. Quando deu por si, estava fazendo o parto, que foi plenamente bem sucedido. A enfermeira parabenizou-o, relatando que ficou surpresa ao perceber que Sérgio conhecia aquela manobra de.... (usou um complicado nome em alemão do criador daquela manobra obstétrica). Sérgio comentou para mim, com seu inigualável humor: “foi a minha primeira experiência mediúnica-junguiana do inconsciente coletivo...”
Ao ser perguntado sobre o que eu achava dessa sua experiência, comentei que realmente, em situações extremas, em momentos de transição de vida ou de morte, energias transpessoais podem ser ativadas no inconsciente coletivo, independentes de nossa volição pessoal. Sérgio Britto teria sido um canal dessas forças curativas coletivas. Na verdade, ele o foi durante toda sua vida, imortal ator como foi, sempre um canal perfeito para personagens representantes de imagens arquetípicas do inconsciente coletivo. Ele sempre nos levou às nossas catarses, ás nossas transformações, às nossas curas através de suas performances.
O interesse de Sérgio por Jung vinha já de algum tempo. Essa identificação com as idéias junguianas o levou logo após o êxito da peça Jung e Eu a fazer uma apresentação para a edição de 2006 do conhecido livro autobiográfico de Jung, Memórias Sonhos e Reflexões, pela Nova Fronteira. Nessa apresentação Sérgio conta um pouco de seu acercamento do complexo pensamento do psicólogo suíço:
“Jung via a libido com maior amplitude, acreditando que valores como a espiritualidade, criatividade e nutrição poderiam mover os homens com tanta força quanto o sexo...... Mais uma vez me aproximo de Jung. Por mais que eu tenha sido o ser humano altamente sexual/sensual, minha libido maior, aquela que dominou minha vida acima de tudo, foi sempre minha carreira artística, especialmente a do ator teatral. Encontro no realizar teatral, na procura interna de meu personagem de cada nova peça, um jogo espiritual altamente prazeroso, e no ato de criar um ser novo que não sendo mais eu, e sim alguém que criei dentro de mim, a libido que realiza um orgasmo acima de todos que experimentei em toda a minha vida sexual amorosa.”
(Sérgio Britto, 2006: 11,12)
Tive ainda dois encontros com Sérgio para mim bastante significativos: no primeiro conversamos sobre os aspectos psicológicos da peça de Lars Nören Outono, Inverno que Sérgio encenou no CCBB do Rio de Janeiro de junho a agosto de 2006, com a direção de Eduardo Tolentino. A conversa foi no programa semanal de Sérgio na TV Educativa, “Arte com Sérgio Britto”. O segundo encontro foi um convite meu para Sérgio dar seu depoimento pessoal sobre Jung em Congresso Junguiano promovido no Hotel Glória em 2008. Nesse último encontro Sérgio Britto foi muito aplaudido por uma platéia de centenas de pessoas de todo o Brasil ao repetir trechos de grande intensidade dramática da peça Jung e Eu.
Agora Sérgio Britto se foi, deixando conosco a memória de sua rica presença e criatividade. Mediador de experiências profundas, catalizador de verdades imutáveis, fez do palco o espaço de transformação, catarse e verdade. Com sua perda, só podemos repetir sua reflexão em um último texto seu:
“Agora é hora de esperar com calma e tentando não sofrer as próximas palavras”.
REFERÊNCIAS
BRITTO, Sérgio (2006)- Como encontrei Jung. In: JUNG, C.G. – Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro; Nova Fronteira.
“E o Sérgio Britto agora virou Estrela...”
Paulo César Brito
Sergio Britto telefonou-me em 2005. Procurava em mim alguém que o ajudasse com os conceitos da psicologia de Jung para a peça Jung e Eu, monólogo de Domingos de Oliveira com a colaboração de Giselle Kosovski sobre Carl Gustav Jung que encenaria meses depois no CCBB. Encontrei Sérgio Britto por diversas vezes em sua casa em Santa Teresa para discutirmos os conceitos fundamentais de Jung, o processo de individuação, o inconsciente coletivo e os arquétipos. Nesses encontros pude descobrir um Sérgio Britto com um discurso vibrante, cativante, puro transporte, a magnética presença de um ator e diretor teatral de personalidade inigualável. Falei sobre os conceitos junguianos, Sérgio demonstrou a íntima convivência com esses conceitos, sua vida sendo plena expressão daquilo que Jung denominou processo de individuação; uma intimidade com os processos internos, uma convivência com as imagens interiores, um trilhar de caminhos tortuosos para a expressão plena do self.
Falou-me com intimidade sobre seus estudos de medicina, muito a gosto da família, mas distintos de seu querer mais autêntico. A poderosa vocação para o teatro já vinha emergindo como expressão do seu self criativo na faculdade, entre os disfarces médicos de sua persona... E contou-me finalmente como o Ator e homem de teatro brotou em sua plenitude e Sérgio pode então construir seu caminho próprio... Eu ouvia a tudo emocionado, constatando que o processo de individuação a que Jung aludira é ainda possível, embora bastante raro...
Sérgio contou-me suas experiências fundamentais. Como conviveu com o preconceito sobre sua orientação sexual e pode integrar em sua vida todos esses aspectos. Ouvindo-o pude perceber a sabedoria da idade avançada convivendo com a inocência e espontaneidade da criança. Parece-me ser essa a maturidade maior. A integração da homossexualidade não se deu sem sofrimento, como me narrou. Falou no rito de passagem do seu processo de individuação em sua tentativa de suicídio, feita de modo automático, cortando os pulsos, após bastante tempo tomando sol na praia de Copacabana. Só depois entendeu os desafios e significados maiores de seu gesto para a integração de sua sombra.
Comentou outro ritual de passagem importante: sua desilusão com a medicina. Ainda estudante, plantonista em maternidade, os médicos estavam ausentes durante a noite. (O que causava grande decepção em Sérgio). Aconteceu um parto emergencial, com apresentação de cócoras. Sérgio não sabia absolutamente o que fazer. Quando deu por si, estava fazendo o parto, que foi plenamente bem sucedido. A enfermeira parabenizou-o, relatando que ficou surpresa ao perceber que Sérgio conhecia aquela manobra de.... (usou um complicado nome em alemão do criador daquela manobra obstétrica). Sérgio comentou para mim, com seu inigualável humor: “foi a minha primeira experiência mediúnica-junguiana do inconsciente coletivo...”
Ao ser perguntado sobre o que eu achava dessa sua experiência, comentei que realmente, em situações extremas, em momentos de transição de vida ou de morte, energias transpessoais podem ser ativadas no inconsciente coletivo, independentes de nossa volição pessoal. Sérgio Britto teria sido um canal dessas forças curativas coletivas. Na verdade, ele o foi durante toda sua vida, imortal ator como foi, sempre um canal perfeito para personagens representantes de imagens arquetípicas do inconsciente coletivo. Ele sempre nos levou às nossas catarses, ás nossas transformações, às nossas curas através de suas performances.
O interesse de Sérgio por Jung vinha já de algum tempo. Essa identificação com as idéias junguianas o levou logo após o êxito da peça Jung e Eu a fazer uma apresentação para a edição de 2006 do conhecido livro autobiográfico de Jung, Memórias Sonhos e Reflexões, pela Nova Fronteira. Nessa apresentação Sérgio conta um pouco de seu acercamento do complexo pensamento do psicólogo suíço:
“Jung via a libido com maior amplitude, acreditando que valores como a espiritualidade, criatividade e nutrição poderiam mover os homens com tanta força quanto o sexo...... Mais uma vez me aproximo de Jung. Por mais que eu tenha sido o ser humano altamente sexual/sensual, minha libido maior, aquela que dominou minha vida acima de tudo, foi sempre minha carreira artística, especialmente a do ator teatral. Encontro no realizar teatral, na procura interna de meu personagem de cada nova peça, um jogo espiritual altamente prazeroso, e no ato de criar um ser novo que não sendo mais eu, e sim alguém que criei dentro de mim, a libido que realiza um orgasmo acima de todos que experimentei em toda a minha vida sexual amorosa.”
(Sérgio Britto, 2006: 11,12)
Tive ainda dois encontros com Sérgio para mim bastante significativos: no primeiro conversamos sobre os aspectos psicológicos da peça de Lars Nören Outono, Inverno que Sérgio encenou no CCBB do Rio de Janeiro de junho a agosto de 2006, com a direção de Eduardo Tolentino. A conversa foi no programa semanal de Sérgio na TV Educativa, “Arte com Sérgio Britto”. O segundo encontro foi um convite meu para Sérgio dar seu depoimento pessoal sobre Jung em Congresso Junguiano promovido no Hotel Glória em 2008. Nesse último encontro Sérgio Britto foi muito aplaudido por uma platéia de centenas de pessoas de todo o Brasil ao repetir trechos de grande intensidade dramática da peça Jung e Eu.
Agora Sérgio Britto se foi, deixando conosco a memória de sua rica presença e criatividade. Mediador de experiências profundas, catalizador de verdades imutáveis, fez do palco o espaço de transformação, catarse e verdade. Com sua perda, só podemos repetir sua reflexão em um último texto seu:
“Agora é hora de esperar com calma e tentando não sofrer as próximas palavras”.
REFERÊNCIAS
BRITTO, Sérgio (2006)- Como encontrei Jung. In: JUNG, C.G. – Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro; Nova Fronteira.
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
OS PROCESSOS CRIATIVOS DO LIBER NOVUS E OS FUTUROS CAMINHOS PARA A PSICOLOGIA ANALÍTICA.
WALTER BOECHAT
INTRODUÇÃO
O grande acontecimento editorial na área da psicologia é sem dúvida o Liber Novus de C.G.Jung, também chamado de O Livro Vermelho. Foi escrito a partir de dezembro de 1913, período crítico da separação de Jung do movimento psicanalítico. Sua escrita se prolongou durante 16 anos até 1930 em forma totalmente original e única representando um testemunho de grande brotamento criativo.
O Livro Vermelho não pode ser considerado uma obra de psicologia clássica. É antes uma descrição viva de um desfilar de imagens internas poderosas com as quais Jung interage e dialoga de forma ativa, procurando com sua curiosidade permanente o significado mais definitivo, sua mensagem última, o que traziam de sentido final para a mente consciente. O escrever e mesmo o configurar essas experiências em forma de imagens plásticas de grande beleza e significado ajudaram-no em um processo de desdobramento e gradual integração simbólica. Jung afirmou em sua autobiografia Memórias, Sonhos e Reflexões que a melhor forma de confrontar emoções primitivas internas seria procurar dar forma a elas, lhes conferir algum tipo de configuração estética. Nesse livro esse postulado fundamental é expresso a todo o momento, pois o Livro Vermelho é um constante personificar de conteúdos inconscientes, um diálogo com esses conteúdos e uma tentativa de integração.
O FORMATO DO LIVRO VERMELHO
Jung escreveu esse importante livro em escrita tradicional gótica. Certas citações, principalmente no primeiro volume, estão em latim. O formato do que chamou Liber Primus mantém-se dentro da tradição medieval: sua paginação é em formato de folios. O rectum, a parte da frente, é a página à esquerda de um livro aberto à nossa frente, o versum, a parte de trás, a página à direita. Mesmo as numerosas ilustrações do Livro Vermelho seguem a técnica medieval da têmpera, modo de ornamentar os altares medievais antes do advento da técnica do óleo sobre tela. Na têmpera, normalmente usada sobre a madeira, os pigmentos são misturados com água e clara de ovo, produzindo a peculiar impressão de profundidade e transcendência mística das pinturas religiosas medievais. A própria estrutura do livro parece transmitir a importância e o valor que a tradição medieval sempre teve para Jung; ele disse certa vez que o homem moderno perdeu a segurança do homem medieval pela perda das tradições e valores típicos daquela época. Em diversas ocasiões disse também da importância que a idade média teria para o desenvolvimento de seu processo psicológico pessoal.
Em sua auto-biografia e diversas partes de sua Obra Completa. Jung enfatiza a importância da idade média. É como se as referências metafísicas da idade média fossem fundamentais para a organização da consciência coletiva do homem ocidental moderno. Desde suas conferências em tempos de universitário, as conhecidas Conferências do Clube universitário Zofingia, Jung sempre teve uma postura de desconfiança em relação ao paradigma da modernidade com sua ênfase exagerada na ciência e uma postura dissociada da natureza e dos instintos. Na verdade defendia certos valores medievais como necessários para a evolução da consciência coletiva ocidental, uma construção introvertida necessária para a formação dos valores do homem contemporâneo. Uma análise do período medieval demonstra facilmente que sem o desenvolvimento de valores como a escolástica no silêncio dos mosteiros e da alquimia na reclusão dos laboratórios dos filósofos, o renascimento não teria sido possível. O período medieval foi uma época de introversão da libido cultural, uma introversão necessária para a elaboração de valores, tão necessária que após o incubatio medieval houve a energia psíquica disponível para um fenômeno cultural extrovertido tão criativo como o renascimento, inicialmente um fenômeno italiano, depois se estendendo por toda a Europa, um fenômeno extremamente extrovertido, manifestando-se nas artes e nos descobrimentos.
Penso que Jung procurou nessa busca formal do tempo medieval um caráter de aprofundamento e reflexão, o silêncio do claustro, o tempo refletido e meticuloso do copista medieval, a beleza detalhista de uma iluminura. A idéia da idade média como uma época de vida interior e respeito ao mistério do dogma reflete-se no contexto do Liber Novus, um livro que ousa desafiar os arroubos de superioridade onipotente da tecnologia da modernidade.
As referências medievais vão aparecer também no primeiro capitulo de Tipos Psicológicos (1921) onde Jung faz um estudo aprofundado de tipos opostos na antiguidade, desde os primeiros padres da Igreja, do 1º sec., de tipologia oposta Tertuliano ( tipo pensamento) e Orígenes (tipo sentimento) até Zwinglio e Lutero, que divergem devido à sua maneira oposta de interpretação do dogma da transubstanciação na ceia cristã, Zwinglio por ser introvertido a vê como puramente simbólica, Lutero, extrovertido, da’ um caráter concreto à transubstanciação, o que estava mais de acordo com a época. Jung faz também um alongado estudo da filosofia escolástica medieval com seus grandes opostos do nominalismo e realismo. O nominalismo (que defende que o ser individual tem primazia sobre as palavras que o definem, essas seriam em si vazias) e o realismo, defendendo a primazia dos conceitos gerais sobre os seres individuais. Jung se deteve na importância da filosofia escolástica em dar continuidade aos grandes opostos da natureza humana, o interesse pelo abstrato, geral ou pelas características específicas de cada ser em particular. Jung lembra que o esse in re (ser na coisa individual) do nominalismo se opõe ao esse in intelectu (ser no espírito) do realismo não encontrando aqui uma mediação e propõe um termo médio, um tertio, que seria esse in anima, o ser na alma. A psicologia, ciência que derivaria da filosofia muito tempo depois é a única capaz de dar conta desse esse in anima, dessa permanência rigorosa no fenômeno psicológico como realidade. A questão fundamental defendida na psicologia analítica da realidade da alma tem suas origens nas preocupações de Jung com a mentalidade medieval.
Penso que Jung procurou nessa busca formal do tempo medieval um caráter de aprofundamento e reflexão, o silêncio do claustro, o tempo refletido e meticuloso do copista medieval, a beleza detalhista de uma iluminura. A idéia da idade média como uma época de vida interior e respeito ao mistério do dogma reflete-se no contexto do Liber Novus, um livro que ousa desafiar os arroubos de superioridade onipotente da tecnologia da modernidade.
O CARÁTER ELABORADO DO LIVRO VERMELHO
É importante enfatizar que o Livro Vermelho não é uma obra apenas fruto de um brotamento espontâneo do inconsciente; isto é, uma obra feita de forma extática a partir de uma inspiração súbita. O Liber Novus é uma obra cuidadosamente elaborada, feita mesmo em diversas camadas ou períodos que se estendem pelos anos. Curiosamente, o Livro Vermelho é mais editado ou elaborado que diversas obras de Jung, como se constata nas Obras Completas. O livro Resposta a Jó (O.C. vol. 12) é apenas um exemplo de obra fortemente inspirada, feita como comentou Marie-Louise Von Franz sob forma de forma inspiração, num período em que Jung estava passando por um tipo de febre. A febre teria cessado após a feitura do livro. Outros trabalhos nas Obras Completas necessitariam, talvez, de uma melhor revisão ou edição. O Livro Vermelho, ao contrário foi cuidadosamente editado e revisado por Jung, como comentou Sonu Shamdasani, seguindo etapas bem definidas:
1.) Uma coleção de imaginações espontânea reunidas até 1902 nos Livros Negros, em número de seis.
2) O período de imaginações ativas começando em dezembro de 1913 até meados de 1915.
3) A digitação gráfica dessas imaginações, sua elaboração, após cuidadosa reflexão.
4) Após colecionar essas notas, essas são enviadas para amigos próximos, pedindo opinião sobre essas experiências.
A presença aqui de pessoas que opinam e trocam impressões com Jung, julgo da maior importância. Shamdasani chama a atenção para o fato de diversas fantasias iniciarem-se com a exclamação: “Senhores!”, segundo ele uma clara indicação que as experiências são para ser partilhadas e divididas entre as pessoas. Vejo aqui o contraponto de uma saudável extroversão criativa, a uma introversão reflexiva. A presença de uma preocupação com o outro é significativa e também enfatiza que o Liber Novus devesse ser publicado, e talvez já devesse ter sido publicado para gratificar a todos os genuinamente interessados em conhecer melhor a essência das experiências de Jung e a geração de sua fascinante obra. Ao contrário, os Livros Negros foram escritos em forma mais pessoal, uma organização de experiências subjetivas de maneira mais intimista.
OS DOIS NÍVEIS DA OBRA
Podemos perceber pelos diversos planos de escrita que o Liber Novus é uma obra cuidadosamente elaborada em dois níveis. Em uma primeira fase há a emergência de imagens espontâneas, configurações simbólicas de grande intensidade emocional, uma polifonia de imagens estranhas e inesperadas. Em um segundo nível, essas densas imagens são trabalhadas dentro de um processo reflexivo, simbólico-interpretativo. Temos aqui em organização dialética a dinâmica mental que Jung denominou os dois tipos de pensamento, em sua obra Símbolos de Transformação : Um seria o pensamento circular, mitológico, pertencente ao inconsciente à linguagem dos sonhos e da fantasia. O outro, o pensamento racional ou adaptativo, típico da consciência. Os símbolos do processo de individuação estariam brotando pelo confronto dos dois tipos de pensamento de sua elaboração criativa.
Considero importante a permanência desses dois tipos de pensamento: o pensamento mitológico permite a sobrevida espontânea da experiência das imagens originais, o pensamento racional é um modo mais consciente, uma tentativa de integração da experiência nova à vida racional cotidiana. Lendo as experiências irracionais de Jung, por vezes inteiramente fora das expectativas da mente consciente, percebemos que a mente racional entra com explicações racionais das experiências numa tentativa de ordenação das experiências de forma a se organizarem de forma mais ou menos acessível para a consciência. O recurso simbólico oferece dentro dessa dinâmica um meio termo, in media res, para um caminhar com certa lógica entre o insólito do inconsciente e o já conhecido da consciência.
COMO TUDO TEVE INÍCIO: OS COMEÇOS DO LIBER NOVUS
O começo de todo esse processo de confronto com o inconsciente se deu com uma impressionante visão que Jung levou também para seu livro de Memórias:
“Aconteceu em outubro de 1913, quando estava sozinho numa viagem, que fui de repente surpreendido em pleno dia por uma visão: vi um dilúvio gigantesco que encobriu todos os países nórdicos e baixos entre o mar do Norte e os Alpes. Estendia-se da Inglaterra até a Rússia, das costas do mar do Norte até quase os Alpes. Eu via as ondas amarelas, os destroços flutuando e a morte de incontáveis milhares. Esta visão durou duas horas, ela me desconcertou e me fez mal. Não fui capaz de interpretá-la”. (Jung, Liber Primus, O Livro Vermelho).
O tema de destruição final do mundo levou Jung a julgar que ele próprio estaria ameaçado de grave doença mental, talvez uma psicose. Assim como essa visão, outros sonhos, fantasias e fortes imagens de destruição e guerra a partir do outono de 1913. A visão repetida ocorrendo em outubro de 1913 tem de início um sentido bastante significativo e premonitório para o mundo objetivo, pois logo após a Europa entraria em época de enorme dor e destruição que seria a primeira grande guerra (1914-1918) com seus três milhões de mortes e inenarráveis sofrimentos. A visão inclui precisamente as fronteiras européias que seriam posteriormente cobertas com um mar de sangue e cadáveres. Entretanto, por uma forte razão, isto é, o acompanhamento do estado subjetivo de Jung e sua vivência de transformação psicológica, podemos entender a visão também de forma subjetiva, como também descrevendo a revolução interna pela qual passaria o autor.
Ele atravessava, o que ele mesmo definiria mais tarde, uma crise de metade de vida. Estava com trinta e sete anos, e sua separação de significativa figura de Freud e do movimento psicanalítico foi uma das manifestações mais significativas do seu profundo período de mudança interior. A outra manifestação foi sem dúvida alguma a própria produção do Livro Vermelho, livro que expressa, de forma direta, o contato de Jung com suas figuras internas. Essa confrontação foi a matéria prima de construção de seus conceitos teóricos mais fundamentais, o conceito de Anima, de Processo de Individuação e do arquétipo do Si - mesmo.
“Quando tive, em dezembro de 1913, a visão do dilúvio, isto aconteceu numa época que foi muito importante para mim como pessoa. Naquele tempo, por volta dos meus quarenta anos de vida havia alcançado tudo o que eu desejara. Havia conseguido fama, poder, riqueza, saber e toda a felicidade humana. Cessou minha ambição de aumentar esses bens, a ambição retrocedeu em mim, e o pavor se apoderou de mim.” (Jung, Liber Primus, “O reencontro da alma”, cap. 1.).
Todo seu mundo interno, toda sua herança pessoal como homem rigorosamente educado em cultura européia de valores sofisticados, tudo isso estava sendo posto em cheque e sendo levado pelas águas. A morte de símbolos significativos, a transvaloração de todos os valores, tudo estava ameaçado de morrer. Como lembrou Jung na ocasião: “pensei que meu espírito havia ficado doente”. (Liber Primus).
A MORTE DO HERÓI.
Dias mais tarde a essa visão (18 de dezembro de 1913), um sonho muito particular estaria trazendo novamente a questão de eventos internos estarem indissoluvelmente ligados ao mundo externo:
“Mas na noite seguinte tive uma visão: Eu estava numa montanha alta com um adolescente. Era antes da aurora, o céu no lado leste já estava claro. Soou então sobre as montanhas a trompa de Siegfried em tom festivo. Sabíamos que nosso inimigo mortal estava chegando. Estávamos armados e emboscados num estreito caminho de pedras, com a finalidade de matá-lo. De repente, apareceu ao longe, vindo no cume da montanha num carro feito de ossos de pessoas falecidas. Desceu com muita destreza e glorioso pelo flanco rochoso e chegou ao caminho estreito onde o esperávamos escondidos. Ao surgir numa curva do caminho, atiramos contra ele, e ele caiu mortalmente ferido. Em seguida preparei-me para fugir, e uma chuva violenta desabou”. (Jung, Liber Primus, “O assassinato do herói”).
Aqui há a mensagem de que o herói deve ser morto e assim foi entendido por Jung. No mundo externo revoltosos estariam matando heróis e figuras representativas também. O sonho antecedia ao assassinato do Arquiduque Francisco Fernando da Áustria por revoltosos em Sarajevo . Esses acontecimentos violentos iriam precipitar a primeira guerra mundial. Em suas reflexões, Jung percebia que antigos valores seus que tinha em alta conta deveriam perecer. Comentou que embora Siegfried, o herói mais famoso da Canção dos Niebelungos, ode mitológica nórdica do século XII , não lhe era de particular admiração. Entretanto, nesse caso em particular, estaria representando os mais altos valores para a consciência que deveriam ser abandonados. É curioso que Jung é ajudado “por uma personificação do inconsciente coletivo”, “o homenzinho trigueiro” como Jung anotou posteriormente nos Livros Negros. Esse homenzinho é uma configuração da sombra que deve ser levada em conta para a mudança de atitude. É uma expressão do que Jung chamaria muito mais tarde de arquétipo do trickster, algo aparentemente inferior na personalidade, mas ao contrário, pode ser o portador da redenção como nesse caso.
Príncipes e heróis sacrificados no mundo de fora, o herói sendo assassinado no mundo subjetivo. Essas e outras sincronicidades marcando momentos altamente significativos para o mundo ocidental e para o indivíduo Jung. Quando mudanças fundamentais ocorrem no mundo externo e interno, essas coincidências significativas tendem a se manifestar.
A confrontação dos antigos valores da consciência com novas questões para a renovação adquiriu nessas visões e sonhos do Livro Vermelho várias representações, além do herói velho que deve morrer. Jung se prolonga em várias partes de seu livro descrevendo a intervenção de dois princípios opositores: o Espírito da Época, representante dos valores da consciência, e o Espírito das Profundezas, representação de novos valores. A linguagem do Espírito da época obedece ao cânone já conhecido e ao já esperado, o familiar. O Espírito da profundeza traz algo inteiramente novo, o surpreendente. O espírito da época são os valores institucionais importantes para a persona, o espírito da época representa uma renovação criativa, uma inspiração.
A VALORAÇÃO DO SÍMBOLO
O símbolo adquire uma importância central para a organização orgânica do livro e Jung determina esse fato desde as primeiras reflexões do Liber Primus, quando fala do caminho daquele que virá. Cita palavras do profeta Elias falando do caminho do salvador. A interpretação do Jung para o Salvador, é que o Salvador é o símbolo, porque só o símbolo pode abrir caminhos novos.
Mas a interpretação simbólica e a amplificação histórica não esgotam a questão da realidade da alma, central nessa confrontação com as figuras do inconsciente. As próprias figuras se afirmam como reais, do ponto d vista psicológico.
Pode-se citar como exemplo os capítulos finais do Liber Primus, quando ocorre a interação de Jung com Isaías e Salomé. Depois de toda a surpresa de uma proximidade de um casal tão diferente entre si, um profeta do antigo testamento sendo o pai de uma mulher pagã, responsável pela decapitação de João Batista, ocorre todo um trabalho de amplificação e de interpretação psicológica.
É digno de nota que o próprio Elias não aceite que ele e Salomé sejam símbolos, afirmando que essa é uma colocação racional de Jung que não faz justiça a eles. Elias e Salomé, eles próprios, se afirmam como figuras reais. Aqui se descortina o conceito de realidade psicológica que Jung aprofundará posteriormente em Considerações teóricas sobre a natureza do psíquico (O.C. Vol. 8) obra de 1939, e outras obras de fase posterior de seu processo criativo. A questão teórica dos opostos psicológicos, intensamente trabalhada na pesquisa de Jung sobre os tipos, já encontra na figuras de Elias e Salomé um terreno extenso para pesquisa teórica de Jung. Em um processo secundário racional de elaboração, Jung procura ver em Elias sua função pensamento mais diferenciada e em Salomé, mulher cega, sua função sentimento menos diferenciada. Vejo nessa elaboração racional uma forma da consciência se proteger do poder numinoso das imagens do inconsciente coletivo, pois como o próprio Elias irá afirmar, ele é Salomé não são símbolos, mas têm existência real, assim como são reais os objetos do mundo circundante para Jung.
Também a articulação com o método de amplificação histórica tem seu lugar na figuras de Elias e Salomé. Em enorme esforço de procurar compreender o quase incompreensível das figuras, Jung procura associar figuras históricas de velhos profetas acompanhados de jovens mulheres, o par Velho Sábio-jovem mulher, que aparece no antigo alquimista grego Zózimo e sua sóror Theosebéia, em Simão Mago, velho gnóstico do século II e sua jovem acompanhante, que na lenda, portava o nome de Helena, assim como em diversos outros pares da história da filosofia, da alquimia, da religião e dos contos de fada. Esses pares falam do eterno fluxo da energia psíquica dentro do processo de transformação psicológica.
Aparecem ainda em diversos pontos da narrativa vivências surpreendentes que fogem totalmente a qualquer lógica consciente. A abordagem da serpente de Elias, por exemplo. A serpente como que por dinâmica própria subjetiva da imaginação passa de Elias para Jung. Esse processo parece-me fundamental na dialética da consciência com o poder autônomo das imagens. O inconsciente tem um grande poder de fascinação, mas é fundamental a posição dialética da consciência. A consciência daquele que imagina sai fortalecida do processo. A serpente como símbolo básico da libido, passando de Elias para Jung, simboliza o fortalecimento da consciência no processo dialético com as figuras do inconsciente.
Em todo o Livro Vermelho há essa riqueza energética das imagens, mas a posição interpretativa da consciência é fundamental. Nesse momento é importante a não identificação com as imagens. Parece-me que um certo esvaziamento do poder fascinante de Elias aqui é importante, dentro do processo dialético, embora a serpente mantenha sua força, como símbolo da identidade original.
O EMPREGO DE ILUSTRAÇÕES NO LIVRO VERMELHO
Um dos traços de maior originalidade no Livro Vermelho é o emprego de numerosas ilustrações. O estilo dessas ilustrações já é significativo, o estilo em têmpera, expressão medieval de um misticismo profundo e rebuscado. Tem-se a impressão que Jung sentiu que certas experiências seriam de tal forma profundas e misteriosas em seu significado que a linguagem puramente verbal não seria suficiente para dar conta da experiências. Só a ilustrações poderiam apontar para certo caminho.
Tal acontece, por exemplo, no episódio do encontro do deus Izdubar. Jung avança por caminho que parece não ter fim. A cena é de montanhas que se perdem na distância. Jung vê figura que se aproxima ao longe, é uma figura gigantesca, seus trajes são o de herói mitológico antigo de uma sociedade tribal. Jung pergunta quem o viajante é e recebe como resposta que o desconhecido chama-se Izdubar, vem do oriente e viaja ao ocidente para conhecer seus povos e seus costumes. Jung revela que vem do ocidente, fala das cidades e seus habitantes, sua tecnologia, suas máquinas voadoras usadas para viagens distantes. Izdubar sente-se fraco, doente, ao estabelecer diálogo com o ser diminuto, com uma linguagem nova para ele, possuidor de um pensamento científico e racional. As referências de Izdubar são os elementos da natureza, os mitos, as profecias e a magia. Sente fraquejar e teme morrer. Deita-se ao solo extremamente fraco. Jung também teme a morte do herói. Subitamente ocorre algo surpreendente, o herói torna-se diminuto e é colocado por Jung em um ovo, começando a entoar cânticos da antiga Índia védica para restaurar a virilidade. O herói, tempos depois é curado e restaurado e renasce sob a forma do deus órfico Phanes. . Posteriormente, o herói pode ser levado sob sua nova forma até as cidades do ocidente.
O momento da cura de Izdubar pelos rituais mágicos é de tal forma misterioso que Jung lança mão de ilustrações simbólicas, técnicas expressivas não-verbais para descrever o processo. A linguagem racional não tem elementos para expressar o processo de transformação que ocorre nesse momento de cura do deus adoecido, recolhido em forma reduzida dentro de um ovo. Talvez o processo possa apenas ser exposto na forma de ilustrações simbólicas.
Nietzsche declarou que Deus está morto. O processo de cura e restauração de Izdubar, fala ao contrário, da assimilação de um deus antigo ao espaço simbólico interior e sua restauração sob nova forma, a forma simbólica. Jung iria escrever mais tarde, em 1930, no prefácio ao Livro O segredo da Flor de Ouro que os deuses clássicos não morreram, mas renovados, produzem os mais variados sintomas no consultório dos terapeutas.
O emprego das ilustrações fala da abordagem pela linguagem não-verbal. Se desde Anna O. temos a mensagem de que a psicoterapia é uma cura pela fala, nesses inícios da escola junguiana de psicoterapia temos expressados os caminhos de uma cura pela não fala ou por técnicas expressivas diversas.
Um outro aspecto do episódio do herói Izdubar é o próprio nome do personagem. Sabemos hoje que Izdubar é na verdade o antiquíssimo herói sumeriano Gilgamesh, do épico Gilgamesh, rei de Uruk. O nome Izdubar foi corrigido para Gilgamesh em textos anteriores à escrita do Liber Novus e Jung tinha conhecimento disso. Porque então manteve o nome Izdubar? Essa é mais uma confirmação que os diversos personagens mitológicos, da história antiga, os personagens Bíblicos do antigo e novo testamento que povoam o Livro Vermelho, são na verdade personificações de conteúdos inconscientes do próprio Jung.
O livro vermelho ‘’e também uma vigorosa afirmação da importância da imaginação ativa como técnica expressiva de desenvolvimento pessoal. É o método mais eficaz da aproximação da camada pessoal e subjetiva da psique da camada impessoal e coletiva. Esses dois aspectos da psique se apresentam dissociados e o indivíduo não tem fácil acesso às camadas do inconsciente coletivo que se apresentam com vigor renovador para a consciência.
A QUESTÃO DA PSICOPATOLOGIA E DOS PERIGOS DO INCONSCIENTE
“Mas onde há perigo, cresce
O que salva também”.
Hölderlin.
Entretanto, qualquer aproximação das camadas mais profundas da psique não se faz sem perigos, dos quais o mais freqüente é a doença mental. Mas se aproximar da camada impessoal da psique o indivíduo deve os pés bem plantados na realidade do mundo cotidiano e Jung sabia disso, como psiquiatra experiente, e pelos anos como médico residente do Hospital psiquiátrico cantonal do Burghölzli. Quando da produção do livro Símbolos de transformação, Jung interpretou as fantasias espontâneas de Mrs. Miller como um caso prodrômico de esquizofrenia, como escreveu no subtítulo da obra: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Entretanto, investigações históricas posteriores, principalmente de Shamdasani demonstraram que na realidade a paciente de Flournoy estudada por Jung tinha um ego razoavelmente bem preservado, sem estrutura psicótica. O diagnóstico de Jung, no caso, mostrava-se pessimista em excesso. Essa cautela contra a psicose se revela em Jung mesmo quando das manifestações iniciais do processo intenso de dezembro de 1913, quando da visão do oceano de sangue com a destruição da Europa. Jung temeu o início de um processo patológico. Essa cautela se mostra explicável pelo aspecto ambivalente que as imagens primordiais possuem em si mesmas: se de um lado são o exilir vitae, a água da vida, a salvação, por outro, também são a perdição, a desorientação e a dissolução da personalidade em fragmentos.
A INSPIRAÇÃO GNÓSTICA DO LIVRO VERMELHO
O Liber Novus emerge em período de crise pessoal de Jung, em momento de grandes decisões e tomada de um caminho mais pessoal em relação às instituições da época. O momento de criação da obra expressa aquele instante de Jung chamaria depois de crise de metade de vida, quando a libido investida no mundo externo, faz um turning point, um ponto de virada, e o indivíduo começa a considerar de maneira predominante seus valores subjetivos. Essa crise de meia via, representa no mitologema do herói, o curso do sol ao meio dia, quando ao alcançar o máximo de seu poder de brilho, o sol prepara-se para descer para o ocidente ( palavra derivada etimologicamente do latim occidere, morrer). O ocidente é o local da morte do sol, se o oriente é o local do nascimento. Diversos autores debateram in extenso a crise de metade de vida, Henri Ellenberger, Murray Stein entre outros.
Entretanto, considero importante perceber o Liber Novus como um brotamento da personalidade altamente criativa de Jung, tendo suas origens remontando aos seus questionamentos existenciais e filosóficos desde a infância. É importante lembrar os sonhos e fantasias de infância relatados no livro de memórias, de modo especial o sonho do falo subterrâneo, o pensamento obsessivo da destruição do templo cristão pelo excremento de Deus, o diálogo com a pedra sobre a natureza de sua identidade pessoal. Notamos nessas fantasias e sonhos a presença questões filosóficas e existenciais, profundas interrogações sobre o papel do homem na sociedade e a religião instituída que irão ter continuidade no Livro Vermelho.
Essas interrogações e buscas encontram seguimento posterior ao Liber Novus nos estudos de alquimia, como o próprio autor relata ao final de sua obra. Se o livro propriamente dito é dividido em duas partes, o Liber Primus e o Liber Secundus, Shamdasani propõe a denominação de Liber Tertius para o capítulo Aprofundamentos, que contêm fantasias e imaginações ativas posteriores a 1916 incluindo Os Sete Sermões aos Mortos, um profundo texto de inspiração gnóstica. Os Sermões já apareceram no livro de Memórias, entretanto lá, eram atribuídos a um filósofo gnóstico, Basílides de Alexandria. Agora, Philemon aparece como o verdadeiro autor dos Sermões, fazendo também comentários a cada Sermão.
Há uma íntima associação entre a gnose e a alquimia. Aniela Jaffé sugere uma continuidade da gnose na alquimia que me parece das mais interessantes. É verdade que Jung mergulhou nos estudos gnósticos e percebeu na gnose uma compensação para a unilateralidade do cristianismo. O mito da totalidade sempre dominou o pensamento de Jung a partir de suas vivências durante a elaboração do Liber Novus. O deus gnóstico Abraxas é a representação mais evidente da expressão dos opostos integrados. Abraxas, o deus dos sapos, tem em si os opostos e representa um complexio oppositorum que satisfez Jung em sua busca de superação da unilateralidade cristã. A gnose tendo origem nos primeiros anos da era cristã compensava, de certa forma a unilateralidade da consciência coletiva de então. Entretanto, embora os arquétipos sejam atemporais, suas manifestações simbólicas, quer sejam individuais quer sejam coletivas, ocorrem em tempo dado, e mudam com o tempo histórico. O processo de compensação simbólica ocorre tanto no indivíduo como na cultura.Com a instauração do cristianismo na cultura ocidental, com sua unilateralidade essencial, formas de compensação se estruturaram no inconsciente coletivo e a gnose é uma delas. Há a manifestação de símbolos semelhantes aos da gnose em sonhos do homem contemporâneo, entretanto haveria uma lacuna histórica entre a gnose e o mundo moderno. Jung encontrou na alquimia medieval a solução de continuidade entre a gnose e as produções contemporâneas de sonhos e fantasias. Essa idéia de uma continuidade simbólica no inconsciente seria análoga à idéia antiga de uma aurea catena, a cadeia dourada, uma cadeia de homens sábios que manteria a continuidade simbólica através das gerações.
Se o capítulo Aprofundamentos é um Liber Tertius, a Torre de Bollingen pode ser considerada um Liber Quartus, a expressão tridimensional do Liber Novus. Sabemos o trabalho alquímico envolvido na construção da Torre, o trabalho manual sobre o bloco de pedra e as diversas inscrições e desenhos e inscrições, algumas delas de significado ainda desconhecido. Entre as inscrições mais instigantes, em uma pedra Jung inscreveu:
Santuário de Philemon, arrependimento de Fausto.
Qual seria o significado dessa misteriosa frase? Aqui estão associados Philemon e Fausto. No Fausto de Goethe há o personagem mitológico Philemon, da estória do casal Philemon e Baucis. Diz o mito que Zeus e Hermes desceram à terra dos homens e na aldeia os estrangeiros disfarçados foram ignorados por todos. Somente o casal piedoso, Philemon e Baucis os recebe. Goethe retoma a estória, e escreve que Mefistófeles destrói o abrigo de Philemon e Baucis, diante de um passivo e inoperante Fausto. O dito de Jung parece indicar a permanente dialética dos opostos, Philemon e Fausto, self e ego dentro da contínua dinâmica do processo de individuação.
BIBLIOGRAFIA
JAFFÉ, Aniela (1972)- From the life and work of C.G.Jung. Londres: Hodder and Stoughton..
JUNG, C.G.- (1928/1993) O problema psíquico do homem moderno. O.C. Vol. X. Petrópolis, Vozes.
JUNG, C.G.- (1911/1986)- Símbolos de transformação. O.C. Vol. V. Petrópolis: Vozes.
SHAMDASANI, Sonu (2010)- Entrevista a Ann Casement no Journal of Analytical Psychology. Vol.55 No.1 , fevereiro, p.35 a p.49.
SHAMDASANI, Sonu (2010): “Introdução” in: C.G. JUNG; Livro Vermelho, ou Liber Novus. Petrópolis: Vozes.
SHAMDASANI, Sonu –(1990). A woman called. Frank, Spring 50, pp. 26-56.
VON FRANZ, Marie-Louise (1975)- C.G.Jung. His Myth in Our Time. Nova York: C.G. Jung Foundation for Analytical Psychology.
WALTER BOECHAT
INTRODUÇÃO
O grande acontecimento editorial na área da psicologia é sem dúvida o Liber Novus de C.G.Jung, também chamado de O Livro Vermelho. Foi escrito a partir de dezembro de 1913, período crítico da separação de Jung do movimento psicanalítico. Sua escrita se prolongou durante 16 anos até 1930 em forma totalmente original e única representando um testemunho de grande brotamento criativo.
O Livro Vermelho não pode ser considerado uma obra de psicologia clássica. É antes uma descrição viva de um desfilar de imagens internas poderosas com as quais Jung interage e dialoga de forma ativa, procurando com sua curiosidade permanente o significado mais definitivo, sua mensagem última, o que traziam de sentido final para a mente consciente. O escrever e mesmo o configurar essas experiências em forma de imagens plásticas de grande beleza e significado ajudaram-no em um processo de desdobramento e gradual integração simbólica. Jung afirmou em sua autobiografia Memórias, Sonhos e Reflexões que a melhor forma de confrontar emoções primitivas internas seria procurar dar forma a elas, lhes conferir algum tipo de configuração estética. Nesse livro esse postulado fundamental é expresso a todo o momento, pois o Livro Vermelho é um constante personificar de conteúdos inconscientes, um diálogo com esses conteúdos e uma tentativa de integração.
O FORMATO DO LIVRO VERMELHO
Jung escreveu esse importante livro em escrita tradicional gótica. Certas citações, principalmente no primeiro volume, estão em latim. O formato do que chamou Liber Primus mantém-se dentro da tradição medieval: sua paginação é em formato de folios. O rectum, a parte da frente, é a página à esquerda de um livro aberto à nossa frente, o versum, a parte de trás, a página à direita. Mesmo as numerosas ilustrações do Livro Vermelho seguem a técnica medieval da têmpera, modo de ornamentar os altares medievais antes do advento da técnica do óleo sobre tela. Na têmpera, normalmente usada sobre a madeira, os pigmentos são misturados com água e clara de ovo, produzindo a peculiar impressão de profundidade e transcendência mística das pinturas religiosas medievais. A própria estrutura do livro parece transmitir a importância e o valor que a tradição medieval sempre teve para Jung; ele disse certa vez que o homem moderno perdeu a segurança do homem medieval pela perda das tradições e valores típicos daquela época. Em diversas ocasiões disse também da importância que a idade média teria para o desenvolvimento de seu processo psicológico pessoal.
Em sua auto-biografia e diversas partes de sua Obra Completa. Jung enfatiza a importância da idade média. É como se as referências metafísicas da idade média fossem fundamentais para a organização da consciência coletiva do homem ocidental moderno. Desde suas conferências em tempos de universitário, as conhecidas Conferências do Clube universitário Zofingia, Jung sempre teve uma postura de desconfiança em relação ao paradigma da modernidade com sua ênfase exagerada na ciência e uma postura dissociada da natureza e dos instintos. Na verdade defendia certos valores medievais como necessários para a evolução da consciência coletiva ocidental, uma construção introvertida necessária para a formação dos valores do homem contemporâneo. Uma análise do período medieval demonstra facilmente que sem o desenvolvimento de valores como a escolástica no silêncio dos mosteiros e da alquimia na reclusão dos laboratórios dos filósofos, o renascimento não teria sido possível. O período medieval foi uma época de introversão da libido cultural, uma introversão necessária para a elaboração de valores, tão necessária que após o incubatio medieval houve a energia psíquica disponível para um fenômeno cultural extrovertido tão criativo como o renascimento, inicialmente um fenômeno italiano, depois se estendendo por toda a Europa, um fenômeno extremamente extrovertido, manifestando-se nas artes e nos descobrimentos.
Penso que Jung procurou nessa busca formal do tempo medieval um caráter de aprofundamento e reflexão, o silêncio do claustro, o tempo refletido e meticuloso do copista medieval, a beleza detalhista de uma iluminura. A idéia da idade média como uma época de vida interior e respeito ao mistério do dogma reflete-se no contexto do Liber Novus, um livro que ousa desafiar os arroubos de superioridade onipotente da tecnologia da modernidade.
As referências medievais vão aparecer também no primeiro capitulo de Tipos Psicológicos (1921) onde Jung faz um estudo aprofundado de tipos opostos na antiguidade, desde os primeiros padres da Igreja, do 1º sec., de tipologia oposta Tertuliano ( tipo pensamento) e Orígenes (tipo sentimento) até Zwinglio e Lutero, que divergem devido à sua maneira oposta de interpretação do dogma da transubstanciação na ceia cristã, Zwinglio por ser introvertido a vê como puramente simbólica, Lutero, extrovertido, da’ um caráter concreto à transubstanciação, o que estava mais de acordo com a época. Jung faz também um alongado estudo da filosofia escolástica medieval com seus grandes opostos do nominalismo e realismo. O nominalismo (que defende que o ser individual tem primazia sobre as palavras que o definem, essas seriam em si vazias) e o realismo, defendendo a primazia dos conceitos gerais sobre os seres individuais. Jung se deteve na importância da filosofia escolástica em dar continuidade aos grandes opostos da natureza humana, o interesse pelo abstrato, geral ou pelas características específicas de cada ser em particular. Jung lembra que o esse in re (ser na coisa individual) do nominalismo se opõe ao esse in intelectu (ser no espírito) do realismo não encontrando aqui uma mediação e propõe um termo médio, um tertio, que seria esse in anima, o ser na alma. A psicologia, ciência que derivaria da filosofia muito tempo depois é a única capaz de dar conta desse esse in anima, dessa permanência rigorosa no fenômeno psicológico como realidade. A questão fundamental defendida na psicologia analítica da realidade da alma tem suas origens nas preocupações de Jung com a mentalidade medieval.
Penso que Jung procurou nessa busca formal do tempo medieval um caráter de aprofundamento e reflexão, o silêncio do claustro, o tempo refletido e meticuloso do copista medieval, a beleza detalhista de uma iluminura. A idéia da idade média como uma época de vida interior e respeito ao mistério do dogma reflete-se no contexto do Liber Novus, um livro que ousa desafiar os arroubos de superioridade onipotente da tecnologia da modernidade.
O CARÁTER ELABORADO DO LIVRO VERMELHO
É importante enfatizar que o Livro Vermelho não é uma obra apenas fruto de um brotamento espontâneo do inconsciente; isto é, uma obra feita de forma extática a partir de uma inspiração súbita. O Liber Novus é uma obra cuidadosamente elaborada, feita mesmo em diversas camadas ou períodos que se estendem pelos anos. Curiosamente, o Livro Vermelho é mais editado ou elaborado que diversas obras de Jung, como se constata nas Obras Completas. O livro Resposta a Jó (O.C. vol. 12) é apenas um exemplo de obra fortemente inspirada, feita como comentou Marie-Louise Von Franz sob forma de forma inspiração, num período em que Jung estava passando por um tipo de febre. A febre teria cessado após a feitura do livro. Outros trabalhos nas Obras Completas necessitariam, talvez, de uma melhor revisão ou edição. O Livro Vermelho, ao contrário foi cuidadosamente editado e revisado por Jung, como comentou Sonu Shamdasani, seguindo etapas bem definidas:
1.) Uma coleção de imaginações espontânea reunidas até 1902 nos Livros Negros, em número de seis.
2) O período de imaginações ativas começando em dezembro de 1913 até meados de 1915.
3) A digitação gráfica dessas imaginações, sua elaboração, após cuidadosa reflexão.
4) Após colecionar essas notas, essas são enviadas para amigos próximos, pedindo opinião sobre essas experiências.
A presença aqui de pessoas que opinam e trocam impressões com Jung, julgo da maior importância. Shamdasani chama a atenção para o fato de diversas fantasias iniciarem-se com a exclamação: “Senhores!”, segundo ele uma clara indicação que as experiências são para ser partilhadas e divididas entre as pessoas. Vejo aqui o contraponto de uma saudável extroversão criativa, a uma introversão reflexiva. A presença de uma preocupação com o outro é significativa e também enfatiza que o Liber Novus devesse ser publicado, e talvez já devesse ter sido publicado para gratificar a todos os genuinamente interessados em conhecer melhor a essência das experiências de Jung e a geração de sua fascinante obra. Ao contrário, os Livros Negros foram escritos em forma mais pessoal, uma organização de experiências subjetivas de maneira mais intimista.
OS DOIS NÍVEIS DA OBRA
Podemos perceber pelos diversos planos de escrita que o Liber Novus é uma obra cuidadosamente elaborada em dois níveis. Em uma primeira fase há a emergência de imagens espontâneas, configurações simbólicas de grande intensidade emocional, uma polifonia de imagens estranhas e inesperadas. Em um segundo nível, essas densas imagens são trabalhadas dentro de um processo reflexivo, simbólico-interpretativo. Temos aqui em organização dialética a dinâmica mental que Jung denominou os dois tipos de pensamento, em sua obra Símbolos de Transformação : Um seria o pensamento circular, mitológico, pertencente ao inconsciente à linguagem dos sonhos e da fantasia. O outro, o pensamento racional ou adaptativo, típico da consciência. Os símbolos do processo de individuação estariam brotando pelo confronto dos dois tipos de pensamento de sua elaboração criativa.
Considero importante a permanência desses dois tipos de pensamento: o pensamento mitológico permite a sobrevida espontânea da experiência das imagens originais, o pensamento racional é um modo mais consciente, uma tentativa de integração da experiência nova à vida racional cotidiana. Lendo as experiências irracionais de Jung, por vezes inteiramente fora das expectativas da mente consciente, percebemos que a mente racional entra com explicações racionais das experiências numa tentativa de ordenação das experiências de forma a se organizarem de forma mais ou menos acessível para a consciência. O recurso simbólico oferece dentro dessa dinâmica um meio termo, in media res, para um caminhar com certa lógica entre o insólito do inconsciente e o já conhecido da consciência.
COMO TUDO TEVE INÍCIO: OS COMEÇOS DO LIBER NOVUS
O começo de todo esse processo de confronto com o inconsciente se deu com uma impressionante visão que Jung levou também para seu livro de Memórias:
“Aconteceu em outubro de 1913, quando estava sozinho numa viagem, que fui de repente surpreendido em pleno dia por uma visão: vi um dilúvio gigantesco que encobriu todos os países nórdicos e baixos entre o mar do Norte e os Alpes. Estendia-se da Inglaterra até a Rússia, das costas do mar do Norte até quase os Alpes. Eu via as ondas amarelas, os destroços flutuando e a morte de incontáveis milhares. Esta visão durou duas horas, ela me desconcertou e me fez mal. Não fui capaz de interpretá-la”. (Jung, Liber Primus, O Livro Vermelho).
O tema de destruição final do mundo levou Jung a julgar que ele próprio estaria ameaçado de grave doença mental, talvez uma psicose. Assim como essa visão, outros sonhos, fantasias e fortes imagens de destruição e guerra a partir do outono de 1913. A visão repetida ocorrendo em outubro de 1913 tem de início um sentido bastante significativo e premonitório para o mundo objetivo, pois logo após a Europa entraria em época de enorme dor e destruição que seria a primeira grande guerra (1914-1918) com seus três milhões de mortes e inenarráveis sofrimentos. A visão inclui precisamente as fronteiras européias que seriam posteriormente cobertas com um mar de sangue e cadáveres. Entretanto, por uma forte razão, isto é, o acompanhamento do estado subjetivo de Jung e sua vivência de transformação psicológica, podemos entender a visão também de forma subjetiva, como também descrevendo a revolução interna pela qual passaria o autor.
Ele atravessava, o que ele mesmo definiria mais tarde, uma crise de metade de vida. Estava com trinta e sete anos, e sua separação de significativa figura de Freud e do movimento psicanalítico foi uma das manifestações mais significativas do seu profundo período de mudança interior. A outra manifestação foi sem dúvida alguma a própria produção do Livro Vermelho, livro que expressa, de forma direta, o contato de Jung com suas figuras internas. Essa confrontação foi a matéria prima de construção de seus conceitos teóricos mais fundamentais, o conceito de Anima, de Processo de Individuação e do arquétipo do Si - mesmo.
“Quando tive, em dezembro de 1913, a visão do dilúvio, isto aconteceu numa época que foi muito importante para mim como pessoa. Naquele tempo, por volta dos meus quarenta anos de vida havia alcançado tudo o que eu desejara. Havia conseguido fama, poder, riqueza, saber e toda a felicidade humana. Cessou minha ambição de aumentar esses bens, a ambição retrocedeu em mim, e o pavor se apoderou de mim.” (Jung, Liber Primus, “O reencontro da alma”, cap. 1.).
Todo seu mundo interno, toda sua herança pessoal como homem rigorosamente educado em cultura européia de valores sofisticados, tudo isso estava sendo posto em cheque e sendo levado pelas águas. A morte de símbolos significativos, a transvaloração de todos os valores, tudo estava ameaçado de morrer. Como lembrou Jung na ocasião: “pensei que meu espírito havia ficado doente”. (Liber Primus).
A MORTE DO HERÓI.
Dias mais tarde a essa visão (18 de dezembro de 1913), um sonho muito particular estaria trazendo novamente a questão de eventos internos estarem indissoluvelmente ligados ao mundo externo:
“Mas na noite seguinte tive uma visão: Eu estava numa montanha alta com um adolescente. Era antes da aurora, o céu no lado leste já estava claro. Soou então sobre as montanhas a trompa de Siegfried em tom festivo. Sabíamos que nosso inimigo mortal estava chegando. Estávamos armados e emboscados num estreito caminho de pedras, com a finalidade de matá-lo. De repente, apareceu ao longe, vindo no cume da montanha num carro feito de ossos de pessoas falecidas. Desceu com muita destreza e glorioso pelo flanco rochoso e chegou ao caminho estreito onde o esperávamos escondidos. Ao surgir numa curva do caminho, atiramos contra ele, e ele caiu mortalmente ferido. Em seguida preparei-me para fugir, e uma chuva violenta desabou”. (Jung, Liber Primus, “O assassinato do herói”).
Aqui há a mensagem de que o herói deve ser morto e assim foi entendido por Jung. No mundo externo revoltosos estariam matando heróis e figuras representativas também. O sonho antecedia ao assassinato do Arquiduque Francisco Fernando da Áustria por revoltosos em Sarajevo . Esses acontecimentos violentos iriam precipitar a primeira guerra mundial. Em suas reflexões, Jung percebia que antigos valores seus que tinha em alta conta deveriam perecer. Comentou que embora Siegfried, o herói mais famoso da Canção dos Niebelungos, ode mitológica nórdica do século XII , não lhe era de particular admiração. Entretanto, nesse caso em particular, estaria representando os mais altos valores para a consciência que deveriam ser abandonados. É curioso que Jung é ajudado “por uma personificação do inconsciente coletivo”, “o homenzinho trigueiro” como Jung anotou posteriormente nos Livros Negros. Esse homenzinho é uma configuração da sombra que deve ser levada em conta para a mudança de atitude. É uma expressão do que Jung chamaria muito mais tarde de arquétipo do trickster, algo aparentemente inferior na personalidade, mas ao contrário, pode ser o portador da redenção como nesse caso.
Príncipes e heróis sacrificados no mundo de fora, o herói sendo assassinado no mundo subjetivo. Essas e outras sincronicidades marcando momentos altamente significativos para o mundo ocidental e para o indivíduo Jung. Quando mudanças fundamentais ocorrem no mundo externo e interno, essas coincidências significativas tendem a se manifestar.
A confrontação dos antigos valores da consciência com novas questões para a renovação adquiriu nessas visões e sonhos do Livro Vermelho várias representações, além do herói velho que deve morrer. Jung se prolonga em várias partes de seu livro descrevendo a intervenção de dois princípios opositores: o Espírito da Época, representante dos valores da consciência, e o Espírito das Profundezas, representação de novos valores. A linguagem do Espírito da época obedece ao cânone já conhecido e ao já esperado, o familiar. O Espírito da profundeza traz algo inteiramente novo, o surpreendente. O espírito da época são os valores institucionais importantes para a persona, o espírito da época representa uma renovação criativa, uma inspiração.
A VALORAÇÃO DO SÍMBOLO
O símbolo adquire uma importância central para a organização orgânica do livro e Jung determina esse fato desde as primeiras reflexões do Liber Primus, quando fala do caminho daquele que virá. Cita palavras do profeta Elias falando do caminho do salvador. A interpretação do Jung para o Salvador, é que o Salvador é o símbolo, porque só o símbolo pode abrir caminhos novos.
Mas a interpretação simbólica e a amplificação histórica não esgotam a questão da realidade da alma, central nessa confrontação com as figuras do inconsciente. As próprias figuras se afirmam como reais, do ponto d vista psicológico.
Pode-se citar como exemplo os capítulos finais do Liber Primus, quando ocorre a interação de Jung com Isaías e Salomé. Depois de toda a surpresa de uma proximidade de um casal tão diferente entre si, um profeta do antigo testamento sendo o pai de uma mulher pagã, responsável pela decapitação de João Batista, ocorre todo um trabalho de amplificação e de interpretação psicológica.
É digno de nota que o próprio Elias não aceite que ele e Salomé sejam símbolos, afirmando que essa é uma colocação racional de Jung que não faz justiça a eles. Elias e Salomé, eles próprios, se afirmam como figuras reais. Aqui se descortina o conceito de realidade psicológica que Jung aprofundará posteriormente em Considerações teóricas sobre a natureza do psíquico (O.C. Vol. 8) obra de 1939, e outras obras de fase posterior de seu processo criativo. A questão teórica dos opostos psicológicos, intensamente trabalhada na pesquisa de Jung sobre os tipos, já encontra na figuras de Elias e Salomé um terreno extenso para pesquisa teórica de Jung. Em um processo secundário racional de elaboração, Jung procura ver em Elias sua função pensamento mais diferenciada e em Salomé, mulher cega, sua função sentimento menos diferenciada. Vejo nessa elaboração racional uma forma da consciência se proteger do poder numinoso das imagens do inconsciente coletivo, pois como o próprio Elias irá afirmar, ele é Salomé não são símbolos, mas têm existência real, assim como são reais os objetos do mundo circundante para Jung.
Também a articulação com o método de amplificação histórica tem seu lugar na figuras de Elias e Salomé. Em enorme esforço de procurar compreender o quase incompreensível das figuras, Jung procura associar figuras históricas de velhos profetas acompanhados de jovens mulheres, o par Velho Sábio-jovem mulher, que aparece no antigo alquimista grego Zózimo e sua sóror Theosebéia, em Simão Mago, velho gnóstico do século II e sua jovem acompanhante, que na lenda, portava o nome de Helena, assim como em diversos outros pares da história da filosofia, da alquimia, da religião e dos contos de fada. Esses pares falam do eterno fluxo da energia psíquica dentro do processo de transformação psicológica.
Aparecem ainda em diversos pontos da narrativa vivências surpreendentes que fogem totalmente a qualquer lógica consciente. A abordagem da serpente de Elias, por exemplo. A serpente como que por dinâmica própria subjetiva da imaginação passa de Elias para Jung. Esse processo parece-me fundamental na dialética da consciência com o poder autônomo das imagens. O inconsciente tem um grande poder de fascinação, mas é fundamental a posição dialética da consciência. A consciência daquele que imagina sai fortalecida do processo. A serpente como símbolo básico da libido, passando de Elias para Jung, simboliza o fortalecimento da consciência no processo dialético com as figuras do inconsciente.
Em todo o Livro Vermelho há essa riqueza energética das imagens, mas a posição interpretativa da consciência é fundamental. Nesse momento é importante a não identificação com as imagens. Parece-me que um certo esvaziamento do poder fascinante de Elias aqui é importante, dentro do processo dialético, embora a serpente mantenha sua força, como símbolo da identidade original.
O EMPREGO DE ILUSTRAÇÕES NO LIVRO VERMELHO
Um dos traços de maior originalidade no Livro Vermelho é o emprego de numerosas ilustrações. O estilo dessas ilustrações já é significativo, o estilo em têmpera, expressão medieval de um misticismo profundo e rebuscado. Tem-se a impressão que Jung sentiu que certas experiências seriam de tal forma profundas e misteriosas em seu significado que a linguagem puramente verbal não seria suficiente para dar conta da experiências. Só a ilustrações poderiam apontar para certo caminho.
Tal acontece, por exemplo, no episódio do encontro do deus Izdubar. Jung avança por caminho que parece não ter fim. A cena é de montanhas que se perdem na distância. Jung vê figura que se aproxima ao longe, é uma figura gigantesca, seus trajes são o de herói mitológico antigo de uma sociedade tribal. Jung pergunta quem o viajante é e recebe como resposta que o desconhecido chama-se Izdubar, vem do oriente e viaja ao ocidente para conhecer seus povos e seus costumes. Jung revela que vem do ocidente, fala das cidades e seus habitantes, sua tecnologia, suas máquinas voadoras usadas para viagens distantes. Izdubar sente-se fraco, doente, ao estabelecer diálogo com o ser diminuto, com uma linguagem nova para ele, possuidor de um pensamento científico e racional. As referências de Izdubar são os elementos da natureza, os mitos, as profecias e a magia. Sente fraquejar e teme morrer. Deita-se ao solo extremamente fraco. Jung também teme a morte do herói. Subitamente ocorre algo surpreendente, o herói torna-se diminuto e é colocado por Jung em um ovo, começando a entoar cânticos da antiga Índia védica para restaurar a virilidade. O herói, tempos depois é curado e restaurado e renasce sob a forma do deus órfico Phanes. . Posteriormente, o herói pode ser levado sob sua nova forma até as cidades do ocidente.
O momento da cura de Izdubar pelos rituais mágicos é de tal forma misterioso que Jung lança mão de ilustrações simbólicas, técnicas expressivas não-verbais para descrever o processo. A linguagem racional não tem elementos para expressar o processo de transformação que ocorre nesse momento de cura do deus adoecido, recolhido em forma reduzida dentro de um ovo. Talvez o processo possa apenas ser exposto na forma de ilustrações simbólicas.
Nietzsche declarou que Deus está morto. O processo de cura e restauração de Izdubar, fala ao contrário, da assimilação de um deus antigo ao espaço simbólico interior e sua restauração sob nova forma, a forma simbólica. Jung iria escrever mais tarde, em 1930, no prefácio ao Livro O segredo da Flor de Ouro que os deuses clássicos não morreram, mas renovados, produzem os mais variados sintomas no consultório dos terapeutas.
O emprego das ilustrações fala da abordagem pela linguagem não-verbal. Se desde Anna O. temos a mensagem de que a psicoterapia é uma cura pela fala, nesses inícios da escola junguiana de psicoterapia temos expressados os caminhos de uma cura pela não fala ou por técnicas expressivas diversas.
Um outro aspecto do episódio do herói Izdubar é o próprio nome do personagem. Sabemos hoje que Izdubar é na verdade o antiquíssimo herói sumeriano Gilgamesh, do épico Gilgamesh, rei de Uruk. O nome Izdubar foi corrigido para Gilgamesh em textos anteriores à escrita do Liber Novus e Jung tinha conhecimento disso. Porque então manteve o nome Izdubar? Essa é mais uma confirmação que os diversos personagens mitológicos, da história antiga, os personagens Bíblicos do antigo e novo testamento que povoam o Livro Vermelho, são na verdade personificações de conteúdos inconscientes do próprio Jung.
O livro vermelho ‘’e também uma vigorosa afirmação da importância da imaginação ativa como técnica expressiva de desenvolvimento pessoal. É o método mais eficaz da aproximação da camada pessoal e subjetiva da psique da camada impessoal e coletiva. Esses dois aspectos da psique se apresentam dissociados e o indivíduo não tem fácil acesso às camadas do inconsciente coletivo que se apresentam com vigor renovador para a consciência.
A QUESTÃO DA PSICOPATOLOGIA E DOS PERIGOS DO INCONSCIENTE
“Mas onde há perigo, cresce
O que salva também”.
Hölderlin.
Entretanto, qualquer aproximação das camadas mais profundas da psique não se faz sem perigos, dos quais o mais freqüente é a doença mental. Mas se aproximar da camada impessoal da psique o indivíduo deve os pés bem plantados na realidade do mundo cotidiano e Jung sabia disso, como psiquiatra experiente, e pelos anos como médico residente do Hospital psiquiátrico cantonal do Burghölzli. Quando da produção do livro Símbolos de transformação, Jung interpretou as fantasias espontâneas de Mrs. Miller como um caso prodrômico de esquizofrenia, como escreveu no subtítulo da obra: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Entretanto, investigações históricas posteriores, principalmente de Shamdasani demonstraram que na realidade a paciente de Flournoy estudada por Jung tinha um ego razoavelmente bem preservado, sem estrutura psicótica. O diagnóstico de Jung, no caso, mostrava-se pessimista em excesso. Essa cautela contra a psicose se revela em Jung mesmo quando das manifestações iniciais do processo intenso de dezembro de 1913, quando da visão do oceano de sangue com a destruição da Europa. Jung temeu o início de um processo patológico. Essa cautela se mostra explicável pelo aspecto ambivalente que as imagens primordiais possuem em si mesmas: se de um lado são o exilir vitae, a água da vida, a salvação, por outro, também são a perdição, a desorientação e a dissolução da personalidade em fragmentos.
A INSPIRAÇÃO GNÓSTICA DO LIVRO VERMELHO
O Liber Novus emerge em período de crise pessoal de Jung, em momento de grandes decisões e tomada de um caminho mais pessoal em relação às instituições da época. O momento de criação da obra expressa aquele instante de Jung chamaria depois de crise de metade de vida, quando a libido investida no mundo externo, faz um turning point, um ponto de virada, e o indivíduo começa a considerar de maneira predominante seus valores subjetivos. Essa crise de meia via, representa no mitologema do herói, o curso do sol ao meio dia, quando ao alcançar o máximo de seu poder de brilho, o sol prepara-se para descer para o ocidente ( palavra derivada etimologicamente do latim occidere, morrer). O ocidente é o local da morte do sol, se o oriente é o local do nascimento. Diversos autores debateram in extenso a crise de metade de vida, Henri Ellenberger, Murray Stein entre outros.
Entretanto, considero importante perceber o Liber Novus como um brotamento da personalidade altamente criativa de Jung, tendo suas origens remontando aos seus questionamentos existenciais e filosóficos desde a infância. É importante lembrar os sonhos e fantasias de infância relatados no livro de memórias, de modo especial o sonho do falo subterrâneo, o pensamento obsessivo da destruição do templo cristão pelo excremento de Deus, o diálogo com a pedra sobre a natureza de sua identidade pessoal. Notamos nessas fantasias e sonhos a presença questões filosóficas e existenciais, profundas interrogações sobre o papel do homem na sociedade e a religião instituída que irão ter continuidade no Livro Vermelho.
Essas interrogações e buscas encontram seguimento posterior ao Liber Novus nos estudos de alquimia, como o próprio autor relata ao final de sua obra. Se o livro propriamente dito é dividido em duas partes, o Liber Primus e o Liber Secundus, Shamdasani propõe a denominação de Liber Tertius para o capítulo Aprofundamentos, que contêm fantasias e imaginações ativas posteriores a 1916 incluindo Os Sete Sermões aos Mortos, um profundo texto de inspiração gnóstica. Os Sermões já apareceram no livro de Memórias, entretanto lá, eram atribuídos a um filósofo gnóstico, Basílides de Alexandria. Agora, Philemon aparece como o verdadeiro autor dos Sermões, fazendo também comentários a cada Sermão.
Há uma íntima associação entre a gnose e a alquimia. Aniela Jaffé sugere uma continuidade da gnose na alquimia que me parece das mais interessantes. É verdade que Jung mergulhou nos estudos gnósticos e percebeu na gnose uma compensação para a unilateralidade do cristianismo. O mito da totalidade sempre dominou o pensamento de Jung a partir de suas vivências durante a elaboração do Liber Novus. O deus gnóstico Abraxas é a representação mais evidente da expressão dos opostos integrados. Abraxas, o deus dos sapos, tem em si os opostos e representa um complexio oppositorum que satisfez Jung em sua busca de superação da unilateralidade cristã. A gnose tendo origem nos primeiros anos da era cristã compensava, de certa forma a unilateralidade da consciência coletiva de então. Entretanto, embora os arquétipos sejam atemporais, suas manifestações simbólicas, quer sejam individuais quer sejam coletivas, ocorrem em tempo dado, e mudam com o tempo histórico. O processo de compensação simbólica ocorre tanto no indivíduo como na cultura.Com a instauração do cristianismo na cultura ocidental, com sua unilateralidade essencial, formas de compensação se estruturaram no inconsciente coletivo e a gnose é uma delas. Há a manifestação de símbolos semelhantes aos da gnose em sonhos do homem contemporâneo, entretanto haveria uma lacuna histórica entre a gnose e o mundo moderno. Jung encontrou na alquimia medieval a solução de continuidade entre a gnose e as produções contemporâneas de sonhos e fantasias. Essa idéia de uma continuidade simbólica no inconsciente seria análoga à idéia antiga de uma aurea catena, a cadeia dourada, uma cadeia de homens sábios que manteria a continuidade simbólica através das gerações.
Se o capítulo Aprofundamentos é um Liber Tertius, a Torre de Bollingen pode ser considerada um Liber Quartus, a expressão tridimensional do Liber Novus. Sabemos o trabalho alquímico envolvido na construção da Torre, o trabalho manual sobre o bloco de pedra e as diversas inscrições e desenhos e inscrições, algumas delas de significado ainda desconhecido. Entre as inscrições mais instigantes, em uma pedra Jung inscreveu:
Santuário de Philemon, arrependimento de Fausto.
Qual seria o significado dessa misteriosa frase? Aqui estão associados Philemon e Fausto. No Fausto de Goethe há o personagem mitológico Philemon, da estória do casal Philemon e Baucis. Diz o mito que Zeus e Hermes desceram à terra dos homens e na aldeia os estrangeiros disfarçados foram ignorados por todos. Somente o casal piedoso, Philemon e Baucis os recebe. Goethe retoma a estória, e escreve que Mefistófeles destrói o abrigo de Philemon e Baucis, diante de um passivo e inoperante Fausto. O dito de Jung parece indicar a permanente dialética dos opostos, Philemon e Fausto, self e ego dentro da contínua dinâmica do processo de individuação.
BIBLIOGRAFIA
JAFFÉ, Aniela (1972)- From the life and work of C.G.Jung. Londres: Hodder and Stoughton..
JUNG, C.G.- (1928/1993) O problema psíquico do homem moderno. O.C. Vol. X. Petrópolis, Vozes.
JUNG, C.G.- (1911/1986)- Símbolos de transformação. O.C. Vol. V. Petrópolis: Vozes.
SHAMDASANI, Sonu (2010)- Entrevista a Ann Casement no Journal of Analytical Psychology. Vol.55 No.1 , fevereiro, p.35 a p.49.
SHAMDASANI, Sonu (2010): “Introdução” in: C.G. JUNG; Livro Vermelho, ou Liber Novus. Petrópolis: Vozes.
SHAMDASANI, Sonu –(1990). A woman called. Frank, Spring 50, pp. 26-56.
VON FRANZ, Marie-Louise (1975)- C.G.Jung. His Myth in Our Time. Nova York: C.G. Jung Foundation for Analytical Psychology.
terça-feira, 22 de novembro de 2011
O Livro Vermelho de C.G. Jung
OS PROCESSOS CRIATIVOS DO LIBER NOVUS E OS FUTUROS CAMINHOS PARA A PSICOLOGIA ANALÍTICA.
WALTER BOECHAT
INTRODUÇÃO
O grande acontecimento editorial na área da psicologia é sem dúvida o Liber Novus de C.G.Jung, também chamado de O Livro Vermelho. Foi escrito a partir de dezembro de 1913, período crítico da separação de Jung do movimento psicanalítico. Sua escrita se prolongou durante 16 anos até 1930 em forma totalmente original e única representando um testemunho de grande brotamento criativo.
O Livro Vermelho não pode ser considerado uma obra de psicologia clássica. É antes uma descrição viva de um desfilar de imagens internas poderosas com as quais Jung interage e dialoga de forma ativa, procurando com sua curiosidade permanente o significado mais definitivo, sua mensagem última. Jung procurava, enfim, o que essas imagens traziam de sentido final para a mente consciente. O escrever e mesmo o configurar essas experiências em forma de imagens plásticas de grande beleza e significado ajudaram-no nesse processo de desdobramento e sua gradual integração. Jung afirmou em seu livro Memórias, Sonhos e Reflexões que a melhor forma de confrontar emoções primitivas internas seria procurar dar forma a elas, dar a elas algum tipo de configuração estética. Nesse livro esse postulado fundamental é expresso a todo o momento, pois o Livro Vermelho é um constante personificar de conteúdos inconscientes, um diálogo com esses conteúdos e uma tentativa de integração.
A ABORDAGEM DO LIVRO VERMELHO
Como fazer a abordagem do Liber Novus? Sua riqueza de conteúdo é convite para uma grande variedade de abordagens possíveis, é chamado permanente para estudo e meditação. O Livro Vermelho também sugere respeito e espera, um processo de amadurecimento e reflexão sobre seu conteúdo com respeito ao tempo necessário para sua integração. É necessário lembrar que Jung levou muitos anos para escrever o livro. Iniciou suas primeiras compilações em dezembro de 1913 e só abandonou a escrita do livro em 1930, após iniciados estudos mais sistematizados de alquimia. Portanto qualquer abordagem da obra deverá respeitar seu aprofundamento, sua complexidade e seus caminhos sofisticados. Uma abordagem do Livro Vermelho é como atender um chamado dele, uma realização pessoal importante, uma reflexão de vida, uma meditação. Não é um trabalho teórico, mas um aprofundamento, uma obra de vida. É como plantar uma árvore, tomar uma decisão existencial de significado. Quando se diz que nós não escolhemos livros, são eles que nos escolhem, isso é particularmente verdadeiro para o Livro Vermelho. Torna-se necessário ouvi-lo para saber por que ele nos escolheu, porque fomos escolhidos por ele para abordá-lo em penetrar seus caminhos misteriosos. Ao realizarmos qualquer abordagem, estaremos, como fez Jung, dando ouvidos ao que chamou, o espírito das profundezas.
O FORMATO DO LIVRO VERMELHO
Jung escreveu esse importante livro em escrita tradicional gótica. Certas citações, principalmente no primeiro volume, estão em latim. O formato do que chamou Liber Primus mantém-se dentro da tradição medieval: sua paginação é em formato de folios. O rectum, a parte da frente, é a página à direita de um livro aberto à nossa frente, o versum, a parte de trás, a página à esquerda. Mesmo as numerosas ilustrações do Livro Vermelho seguem a técnica medieval da têmpera, modo de ornamentar os altares medievais antes do advento da técnica do óleo sobre tela. Na têmpera, normalmente usada sobre a madeira, os pigmentos são misturados com água e clara de ovo, produzindo a peculiar impressão de profundidade e transcendência mística das pinturas religiosas medievais. A própria estrutura do livro parece transmitir a importância e o valor que a tradição medieval sempre teve para Jung; ele disse certa vez que o homem moderno perdeu a segurança do homem medieval pela perda das tradições e valores típicos daquela época. Em diversas ocasiões disse também da importância que a idade média teria para o desenvolvimento de seu processo psicológico pessoal.
Penso que Jung procurou nessa busca formal do tempo medieval um caráter de aprofundamento e reflexão, o silêncio do claustro, o tempo refletido e meticuloso do copista medieval, a beleza detalhista de uma iluminura. A idéia da idade média como uma época de vida interior e respeito ao mistério do dogma reflete-se no contexto do Liber Novus, um livro que ousa desafiar os arroubos de superioridade onipotente da tecnologia da modernidade.
CARÁTER ELABORADO DO LIVRO VERMELHO
É importante enfatizar que o Livro Vermelho não é uma obra apenas fruto de um brotamento espontâneo do inconsciente; isto é, uma obra feita de forma extática a partir de uma inspiração súbita. O Liber Novus é uma obra cuidadosamente elaborada, feita mesmo em diversas camadas ou períodos que se estendem pelos anos. Curiosamente, o Livro Vermelho é mais editado ou elaborado que diversas obras de Jung, como se constata nas Obras Completas. O livro Resposta a Jó (O.C. vol. 11) é apenas um exemplo de obra fortemente inspirada, feita como comentou Marie-Louise Von Franz sob forma de forma inspiração, num período em que Jung estava passando por um tipo de febre. A febre teria cessado após a feitura do livro. Outros trabalhos nas Obras Completas necessitariam, talvez, de uma melhor revisão ou edição. O Livro Vermelho, ao contrário foi cuidadosamente editado e revisado por Jung, como comentou Sonu Shamdasani, seguindo etapas bem definidas:
1.) Uma coleção de imaginações espontânea reunidas até 1902 nos Livros Negros.
2.) O período de imaginações ativas começando em dezembro de 1913 até meados de 1915.
3) A digitação gráfica dessas imaginações, sua elaboração, após cuidadosa reflexão.
4) Após colecionar essas notas, essas são enviadas para amigos próximos, pedindo opinião sobre essas experiências.
5.) A edição final da obra caligráfica do Livro Vermelho, com algumas modificações e expansões.
A presença aqui de pessoas que opinam e trocam impressões com Jung, julgo da maior importância. Shamdasani chama a atenção para o fato de diversas fantasias iniciarem-se com a exclamação: “Senhores!”, segundo ele uma clara indicação que as experiências são para ser partilhadas e divididas entre as pessoas. Vejo aqui o contraponto de uma saudável extroversão criativa, a uma introversão reflexiva. A presença de uma preocupação com o outro é significativa e também enfatiza que o Liber Novus devesse ser publicado, e talvez já devesse ter sido publicado para gratificar a todos os genuinamente interessados em conhecer melhor a essência das experiências de Jung e a geração de sua fascinante obra. Ao contrário, os Livros Negros foram escritos em forma mais pessoal, uma organização de experiências subjetivas de maneira mais intimista.
OS DOIS NÍVEIS DA OBRA
Podemos perceber pelos diversos planos de escrita que o Liber Novus é uma obra cuidadosamente elaborada em dois níveis. Em uma primeira fase há a emergência de imagens espontâneas, configurações simbólicas de grande intensidade emocional, uma polifonia de imagens estranhas e inesperadas. Em um segundo nível, essas densas imagens são trabalhadas dentro de um processo reflexivo, simbólico-interpretativo. Temos aqui em organização dialética a dinâmica mental que Jung denominou os dois tipos de pensamento, em sua obra Símbolos de Transformação : Um seria o pensamento circular, mitológico, pertencente ao inconsciente à linguagem dos sonhos e da fantasia. O outro, o pensamento racional ou adaptativo, típico da consciência. Os símbolos do processo de individuação estariam brotando pelo confronto dos dois tipos de pensamento de sua elaboração criativa.
Considero importante a permanência desses dois tipos de pensamento: o pensamento mitológico permite a sobrevida espontânea da experiência das imagens originais, o pensamento racional é um modo mais consciente, uma tentativa de integração da experiência nova à vida racional cotidiana. Lendo as experiências irracionais de Jung, por vezes inteiramente fora das expectativas da mente consciente, percebemos que a mente racional entra com explicações das experiências numa tentativa de ordenação dessas experiências de forma a se organizarem de forma mais ou menos acessível para a consciência. O recurso simbólico oferece dentro dessa dinâmica um meio termo, in media res, para um caminhar com certa lógica entre o insólito do inconsciente e o já conhecido da consciência.
A VALORAÇÃO DO SÍMBOLO
Nesse aspecto o símbolo adquire uma importância central para a organização orgânica do livro e Jung determina esse fato desde as primeiras reflexões do Liber Primus, quando fala do caminho daquele que virá. Cita palavras do profeta Isaías falando do caminho do Salvador. A interpretação do Jung para o Salvador, é que o Salvador é o símbolo, porque só o símbolo pode abrir caminhos novos.
Mas a interpretação simbólica e a amplificação histórica não esgotam a questão da realidade da alma, central nessa confrontação com as figuras do inconsciente. As próprias figuras se afirmam como reais, do ponto d vista psicológico.
Pode-se citar como exemplo os capítulos finais do Liber Primus, quando ocorre a interação de Jung com as figuras de Elias e Salomé. Depois de toda a surpresa de uma proximidade de um casal tão diferente entre si, um profeta do antigo testamento sendo o pai de uma mulher pagã, responsável pela decapitação de João Batista, ocorre todo um trabalho de amplificação e de interpretação psicológica.
É digno de nota que o próprio Elias não aceite que ele e Salomé sejam símbolos, afirmando que essa é uma colocação racional de Jung que não faz justiça a eles. Elias e Salomé, eles próprios, se afirmam como figuras reais. Aqui se descortina o conceito de realidade psicológica que Jung aprofundará posteriormente em Considerações teóricas sobre a natureza do psíquico (O.C. Vol. 8) obra de 1939, e outras obras de fase posterior de seu processo criativo. A questão teórica dos opostos psicológicos, intensamente trabalhada na pesquisa de Jung sobre os tipos, já encontra na figuras de Elias e Salomé um terreno extenso para pesquisa teórica de Jung. Em um processo secundário racional de elaboração, Jung procura ver em Elias sua função pensamento mais diferenciada e em Salomé, mulher cega, sua função sentimento menos diferenciada. Vejo nessa elaboração racional uma forma da consciência se proteger do poder numinoso das imagens do inconsciente coletivo, pois como o próprio Elias irá afirmar, ele é Salomé não são símbolos, mas têm existência real, assim como são reais os objetos do mundo circundante para Jung.
Também a articulação com o método de amplificação histórica tem seu lugar na figuras de Elias e Salomé. Em enorme esforço de procurar compreender o quase incompreensível das figuras, Jung procura associar figuras históricas de velhos profetas acompanhados de jovens mulheres, o par Velho Sábio-jovem mulher, que aparece no antigo alquimista grego Zózimo e sua sóror Theosebéia, o sábio gnóstico Simão Mago e sua acompanhante, a jovem Helena, assim como em diversos outros pares da história da filosofia, da alquimia, da religião e dos contos de fada. Esses pares falam do eterno fluxo da energia psíquica dentro do processo de transformação psicológica.
Aparecem ainda em diversos pontos da narrativa, vivências surpreendentes que fogem totalmente a qualquer lógica consciente. A abordagem da serpente de Elias, por exemplo. A serpente como que por dinâmica própria subjetiva da imaginação passa de Elias para Jung. Esse processo parece-me fundamental na dialética da consciência com o poder autônomo das imagens. O inconsciente tem um grande poder de fascinação, mas é fundamental a posição dialética da consciência. A consciência daquele que imagina sai fortalecida do processo. A serpente como símbolo básico da libido, passando de Elias para Jung, simboliza o fortalecimento da consciência no processo dialético com as figuras do inconsciente.
Em todo o Livro Vermelho há essa riqueza energética das imagens, mas a posição interpretativa da consciência é fundamental. Nesse momento é importante a não identificação com as imagens. Parece-me que um certo esvaziamento do poder fascinante de Elias aqui é importante, dentro do processo dialético, embora a serpente mantenha sua força, como símbolo da identidade original.
O EMPREGO DE ILUSTRAÇÕES NO LIVRO VERMELHO
Um dos traços de maior originalidade no Livro Vermelho é o emprego de numerosas ilustrações. O estilo dessas ilustrações já é significativo, o estilo em têmpera, expressão medieval de um misticismo profundo e rebuscado. Tem-se a impressão que Jung sentiu que certas experiências seriam de tal forma profundas e misteriosas em seu significado que a linguagem puramente verbal não seria suficiente para dar conta da experiências. Só a ilustrações poderiam apontar para certo caminho.
Tal acontece, por exemplo, no episódio do encontro do deus Izdubar. Jung avança por caminho que parece não ter fim. A cena é de montanhas que se perdem na distância. Jung vê figura que se aproxima ao longe, é uma figura gigantesca, seus trajes são o de herói mitológico antigo de uma sociedade tribal. Jung pergunta quem o viajante é e recebe como resposta que o desconhecido chama-se Izdubar, vem do oriente e viaja ao ocidente para conhecer seus povos e seus costumes. Jung revela que vem do ocidente, fala das cidades e seus habitantes, sua tecnologia, suas máquinas voadoras usadas para viagens distantes. Izdubar sente-se fraco, doente, ao estabelecer diálogo com o ser diminuto, com uma linguagem nova para ele, possuidor de um pensamento científico e racional. As referências de Izdubar são os elementos da natureza, os mitos, as profecias e a magia. Sente fraquejar e teme morrer. Deita-se ao solo extremamente fraco. Jung também teme a morte do herói. Subitamente ocorre algo surpreendente, o herói torna-se diminuto e é colocado por Jung em um ovo, começando a entoar cânticos da antiga Índia védica para restaurar a virilidade. O herói, tempos depois é curado e restaurado e renasce sob a forma do deus órfico Phanes. . Posteriormente, o herói pode ser levado sob sua nova forma até as cidades do ocidente.
O momento da cura de Izdubar pelos rituais mágicos é de tal forma misterioso que Jung lança mão de ilustrações simbólicas, técnicas expressivas não-verbais para descrever o processo. A linguagem racional não tem elementos para expressar o processo de transformação que ocorre nesse momento de cura do deus adoecido, recolhido em forma reduzida dentro de um ovo. Talvez o processo possa apenas ser exposto na forma de ilustrações simbólicas.
Nietzsche declarou que Deus está morto. O processo de cura e restauração de Izdubar, fala ao contrário, da assimilação de um deus antigo ao espaço simbólico interior e sua restauração sob nova forma, a forma simbólica. Jung iria escrever mais tarde, em 1930, no prefácio ao Livro O segredo da Flor de Ouro que os deuses clássicos não morreram, mas renovados, produzem os mais variados sintomas no consultório dos terapeutas.
O emprego das ilustrações fala da abordagem pela linguagem não-verbal. Se desde Anna O. temos a mensagem de que a psicoterapia é uma cura pela fala, nesses inícios da escola junguiana de psicoterapia temos expressados os caminhos de uma cura pela não fala ou por técnicas expressivas diversas.
Um outro aspecto do episódio do herói Izdubar é o próprio nome do personagem. Sabemos hoje que Izdubar é na verdade o antiqüíssimo herói sumeriano Gilgamesh, do épico Gilgamesh, rei de Uruk. O nome Izdubar foi corrigido para Gilgamesh em textos anteriores à escrita do Liber Novus e Jung tinha conhecimento disso. Porque então manteve o nome Izdubar? Essa é mais uma confirmação que os diversos personagens mitológicos, da história antiga, os personagens Bíblicos do antigo e novo testamento que povoam o Livro Vermelho, são na verdade personificações de conteúdos inconscientes do próprio Jung.
O livro vermelho ‘’e também uma vigorosa afirmação da importância da imaginação ativa como técnica expressiva de desenvolvimento pessoal. É o método mais eficaz da aproximação da camada pessoal e subjetiva da psique da camada impessoal e coletiva. Esses dois aspectos da psique se apresentam dissociados e o indivíduo não tem fácil acesso às camadas do inconsciente coletivo que se apresentam com vigor renovador para a consciência.
A QUESTÃO DA PSICOPATOLOGIA E DOS PERIGOS DO INCONSCIENTE
“Mas onde há perigo, cresce
O que salva também”.
Hölderlin.
Entretanto, qualquer aproximação das camadas mais profundas da psique não se faz sem perigos, dos quais o mais freqüente é a doença mental. Mas se aproximar da camada impessoal da psique o indivíduo deve os pés bem plantados na realidade do mundo cotidiano e Jung sabia disso, como psiquiatra experiente, e pelos anos como médico residente do Hospital psiquiátrico cantonal do Burghölzli. Quando da produção do livro Símbolos de transformação, Jung interpretou as fantasias espontâneas de Mrs. Miller como um caso prodrômico de esquizofrenia, como escreveu no subtítulo da obra: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Entretanto, investigações históricas posteriores, principalmente de Shamdasani demonstraram que na realidade a paciente de Flournoy estudada por Jung tinha um ego razoavelmente bem preservado, sem estrutura psicótica. O diagnóstico de Jung, no caso, mostrava-se pessimista em excesso. Essa cautela contra a psicose se revela em Jung mesmo quando das manifestações iniciais do processo intenso de dezembro de 1913, quando da visão do oceano de sangue com a destruição da Europa. Jung temeu o início de um processo patológico. Essa cautela se mostra explicável pelo aspecto ambivalente que as imagens primordiais possuem em si mesmas: se de um lado são o exilir vitae, a água da vida, a salvação, por outro, também são a perdição, a desorientação e a dissolução da personalidade em fragmentos.
A INSPIRAÇÃO GNÓSTICA DO LIVRO VERMELHO
O Liber Novus emerge em período de crise pessoal de Jung, em momento de grandes decisões e tomada de um caminho mais pessoal em relação às instituições da época. O momento de criação da obra expressa aquele instante de Jung chamaria depois de crise de metade de vida, quando a libido investida no mundo externo, faz um turning point, um ponto de virada, e o indivíduo começa a considerar de maneira predominante seus valores subjetivos. Essa crise de meia via, representa no mitologema do herói, o curso do sol ao meio dia, quando ao alcançar o máximo de seu poder de brilho, o sol prepara-se para descer para o ocidente ( palavra derivada etimologicamente do latim occidere, morrer). O ocidente é o local da morte do sol, se o oriente é o local do nascimento. Diversos autores debateram in extenso a crise de metade de vida, Henri Ellenberger, Murray Stein entre outros.
Entretanto, considero importante perceber o Liber Novus como um brotamento da personalidade altamente criativa de Jung, tendo suas origens remontando aos seus questionamentos existenciais e filosóficos desde a infância. É importante lembrar os sonhos e fantasias de infância relatados no livro de memórias, de modo especial o sonho do falo subterrâneo, o pensamento obsessivo da destruição do templo cristão pelo excremento de Deus, o diálogo com a pedra sobre a natureza de sua identidade pessoal. Notamos nessas fantasias e sonhos a presença questões filosóficas e existenciais, profundas interrogações sobre o papel do homem na sociedade e a religião instituída que irão ter continuidade no Livro Vermelho.
Essas interrogações e buscas encontram seguimento posterior ao Liber Novus nos estudos de alquimia, como o próprio autor relata ao final de sua obra. Se o livro propriamente dito é dividido em duas partes, o Liber Primus e o Liber Secundus, Shamdasani propõe a denominação de Liber Tertius para o capítulo Aprofundamentos, que contêm fantasias e imaginações ativas posteriores a 1916 incluindo Os Sete Sermões aos Mortos, um profundo texto de inspiração gnóstica. Os Sermões já apareceram no livro de Memórias, entretanto lá, eram atribuídos a um filósofo gnóstico, Basílides de Alexandria. Agora, Philemon aparece como o verdadeiro autor dos Sermões, fazendo também comentários a cada Sermão.
Há uma íntima associação entre a gnose e a alquimia. Aniela Jaffé sugere uma continuidade da gnose na alquimia que me parece das mais interessantes. É verdade que Jung mergulhou nos estudos gnósticos e percebeu na gnose uma compensação para a unilateralidade do cristianismo. O mito da totalidade sempre dominou o pensamento de Jung a partir de suas vivências durante a elaboração do Liber Novus. O deus gnóstico Abraxas é a representação mais evidente da expressão dos opostos integrados. Abraxas, o deus dos sapos, tem em si os opostos e representa um complexio oppositorum que satisfez Jung em sua busca de superação da unilateralidade cristã. A gnose tendo origem nos primeiros anos da era cristã compensava, de certa forma a unilateralidade da consciência coletiva de então. Entretanto, embora os arquétipos sejam atemporais, suas manifestações simbólicas, quer sejam individuais quer sejam coletivas, ocorrem em tempo dado, e mudam com o tempo histórico. O processo de compensação simbólica ocorre tanto no indivíduo como na cultura.Com a instauração do cristianismo na cultura ocidental, com sua unilateralidade essencial, formas de compensação se estruturaram no inconsciente coletivo e a gnose é uma delas. Há a manifestação de símbolos semelhantes aos da gnose em sonhos do homem contemporâneo, entretanto haveria uma lacuna histórica entre a gnose e o mundo moderno. Jung encontrou na alquimia medieval a solução de continuidade entre a gnose e as produções contemporâneas de sonhos e fantasias. Essa idéia de uma continuidade simbólica no inconsciente seria análoga à idéia antiga de uma aurea catena, a cadeia dourada, uma cadeia de homens sábios que manteria a continuidade simbólica através das gerações.
Se o capítulo Aprofundamentos é um Liber Tertius, a Torre de Bollingen pode ser considerada um Liber Quartus, a expressão tridimensional do Liber Novus. Sabemos o trabalho alquímico envolvido na construção da Torre, o trabalho manual sobre o bloco de pedra e as diversas inscrições e desenhos, algumas deles de significado ainda desconhecido. Entre as inscrições mais instigantes, em uma pedra Jung inscreveu:
Santuário de Philemon, arrependimento de Fausto.
Qual seria o significado dessa misteriosa frase? Aqui estão associados Philemon e Fausto. No Fausto de Goethe há o personagem mitológico Philemon, da estória do casal Philemon e Baucis. Diz o mito que Zeus e Hermes desceram à terra dos homens e na aldeia os estrangeiros disfarçados foram ignorados por todos. Somente o casal piedoso, Philemon e Baucis os recebe. Goethe retoma a estória, e escreve que Mefistófeles destrói o abrigo de Philemon e Baucis, diante de um passivo e inoperante Fausto. O dito de Jung parece indicar a permanente dialética dos opostos, Philemon e Fausto, self e ego dentro da contínua dinâmica do processo de individuação.
BIBLIOGRAFIA
JAFFÉ, Aniela (1972)- From the life and work of C.G.Jung. Londres: Hodder and Stoughton..
JUNG, C.G.- (1928/1993) O problema psíquico do homem moderno. O.C. Vol. X. Petrópolis, Vozes.
JUNG, C.G.- (1911/1986)- Símbolos de transformação. O.C. Vol. V. Petrópolis: Vozes.
SHAMDASANI, Sonu (2010)- Entrevista a Ann Casement no Journal of Analytical Psychology. Vol.55 No.1 , fevereiro, p.35 a p.49.
SHAMDASANI, Sonu (2010): “Introdução” in: C.G. JUNG; Livro Vermelho, ou Liber Novus. Petrópolis: Vozes.
SHAMDASANI, Sonu –(1990). A woman called. Frank, Spring 50, pp. 26-56.
VON FRANZ, Marie-Louise (1975)- C.G.Jung. His Myth in Our Time. Nova York: C.G. Jung Foundation for Analytical Psychology.
WALTER BOECHAT
INTRODUÇÃO
O grande acontecimento editorial na área da psicologia é sem dúvida o Liber Novus de C.G.Jung, também chamado de O Livro Vermelho. Foi escrito a partir de dezembro de 1913, período crítico da separação de Jung do movimento psicanalítico. Sua escrita se prolongou durante 16 anos até 1930 em forma totalmente original e única representando um testemunho de grande brotamento criativo.
O Livro Vermelho não pode ser considerado uma obra de psicologia clássica. É antes uma descrição viva de um desfilar de imagens internas poderosas com as quais Jung interage e dialoga de forma ativa, procurando com sua curiosidade permanente o significado mais definitivo, sua mensagem última. Jung procurava, enfim, o que essas imagens traziam de sentido final para a mente consciente. O escrever e mesmo o configurar essas experiências em forma de imagens plásticas de grande beleza e significado ajudaram-no nesse processo de desdobramento e sua gradual integração. Jung afirmou em seu livro Memórias, Sonhos e Reflexões que a melhor forma de confrontar emoções primitivas internas seria procurar dar forma a elas, dar a elas algum tipo de configuração estética. Nesse livro esse postulado fundamental é expresso a todo o momento, pois o Livro Vermelho é um constante personificar de conteúdos inconscientes, um diálogo com esses conteúdos e uma tentativa de integração.
A ABORDAGEM DO LIVRO VERMELHO
Como fazer a abordagem do Liber Novus? Sua riqueza de conteúdo é convite para uma grande variedade de abordagens possíveis, é chamado permanente para estudo e meditação. O Livro Vermelho também sugere respeito e espera, um processo de amadurecimento e reflexão sobre seu conteúdo com respeito ao tempo necessário para sua integração. É necessário lembrar que Jung levou muitos anos para escrever o livro. Iniciou suas primeiras compilações em dezembro de 1913 e só abandonou a escrita do livro em 1930, após iniciados estudos mais sistematizados de alquimia. Portanto qualquer abordagem da obra deverá respeitar seu aprofundamento, sua complexidade e seus caminhos sofisticados. Uma abordagem do Livro Vermelho é como atender um chamado dele, uma realização pessoal importante, uma reflexão de vida, uma meditação. Não é um trabalho teórico, mas um aprofundamento, uma obra de vida. É como plantar uma árvore, tomar uma decisão existencial de significado. Quando se diz que nós não escolhemos livros, são eles que nos escolhem, isso é particularmente verdadeiro para o Livro Vermelho. Torna-se necessário ouvi-lo para saber por que ele nos escolheu, porque fomos escolhidos por ele para abordá-lo em penetrar seus caminhos misteriosos. Ao realizarmos qualquer abordagem, estaremos, como fez Jung, dando ouvidos ao que chamou, o espírito das profundezas.
O FORMATO DO LIVRO VERMELHO
Jung escreveu esse importante livro em escrita tradicional gótica. Certas citações, principalmente no primeiro volume, estão em latim. O formato do que chamou Liber Primus mantém-se dentro da tradição medieval: sua paginação é em formato de folios. O rectum, a parte da frente, é a página à direita de um livro aberto à nossa frente, o versum, a parte de trás, a página à esquerda. Mesmo as numerosas ilustrações do Livro Vermelho seguem a técnica medieval da têmpera, modo de ornamentar os altares medievais antes do advento da técnica do óleo sobre tela. Na têmpera, normalmente usada sobre a madeira, os pigmentos são misturados com água e clara de ovo, produzindo a peculiar impressão de profundidade e transcendência mística das pinturas religiosas medievais. A própria estrutura do livro parece transmitir a importância e o valor que a tradição medieval sempre teve para Jung; ele disse certa vez que o homem moderno perdeu a segurança do homem medieval pela perda das tradições e valores típicos daquela época. Em diversas ocasiões disse também da importância que a idade média teria para o desenvolvimento de seu processo psicológico pessoal.
Penso que Jung procurou nessa busca formal do tempo medieval um caráter de aprofundamento e reflexão, o silêncio do claustro, o tempo refletido e meticuloso do copista medieval, a beleza detalhista de uma iluminura. A idéia da idade média como uma época de vida interior e respeito ao mistério do dogma reflete-se no contexto do Liber Novus, um livro que ousa desafiar os arroubos de superioridade onipotente da tecnologia da modernidade.
CARÁTER ELABORADO DO LIVRO VERMELHO
É importante enfatizar que o Livro Vermelho não é uma obra apenas fruto de um brotamento espontâneo do inconsciente; isto é, uma obra feita de forma extática a partir de uma inspiração súbita. O Liber Novus é uma obra cuidadosamente elaborada, feita mesmo em diversas camadas ou períodos que se estendem pelos anos. Curiosamente, o Livro Vermelho é mais editado ou elaborado que diversas obras de Jung, como se constata nas Obras Completas. O livro Resposta a Jó (O.C. vol. 11) é apenas um exemplo de obra fortemente inspirada, feita como comentou Marie-Louise Von Franz sob forma de forma inspiração, num período em que Jung estava passando por um tipo de febre. A febre teria cessado após a feitura do livro. Outros trabalhos nas Obras Completas necessitariam, talvez, de uma melhor revisão ou edição. O Livro Vermelho, ao contrário foi cuidadosamente editado e revisado por Jung, como comentou Sonu Shamdasani, seguindo etapas bem definidas:
1.) Uma coleção de imaginações espontânea reunidas até 1902 nos Livros Negros.
2.) O período de imaginações ativas começando em dezembro de 1913 até meados de 1915.
3) A digitação gráfica dessas imaginações, sua elaboração, após cuidadosa reflexão.
4) Após colecionar essas notas, essas são enviadas para amigos próximos, pedindo opinião sobre essas experiências.
5.) A edição final da obra caligráfica do Livro Vermelho, com algumas modificações e expansões.
A presença aqui de pessoas que opinam e trocam impressões com Jung, julgo da maior importância. Shamdasani chama a atenção para o fato de diversas fantasias iniciarem-se com a exclamação: “Senhores!”, segundo ele uma clara indicação que as experiências são para ser partilhadas e divididas entre as pessoas. Vejo aqui o contraponto de uma saudável extroversão criativa, a uma introversão reflexiva. A presença de uma preocupação com o outro é significativa e também enfatiza que o Liber Novus devesse ser publicado, e talvez já devesse ter sido publicado para gratificar a todos os genuinamente interessados em conhecer melhor a essência das experiências de Jung e a geração de sua fascinante obra. Ao contrário, os Livros Negros foram escritos em forma mais pessoal, uma organização de experiências subjetivas de maneira mais intimista.
OS DOIS NÍVEIS DA OBRA
Podemos perceber pelos diversos planos de escrita que o Liber Novus é uma obra cuidadosamente elaborada em dois níveis. Em uma primeira fase há a emergência de imagens espontâneas, configurações simbólicas de grande intensidade emocional, uma polifonia de imagens estranhas e inesperadas. Em um segundo nível, essas densas imagens são trabalhadas dentro de um processo reflexivo, simbólico-interpretativo. Temos aqui em organização dialética a dinâmica mental que Jung denominou os dois tipos de pensamento, em sua obra Símbolos de Transformação : Um seria o pensamento circular, mitológico, pertencente ao inconsciente à linguagem dos sonhos e da fantasia. O outro, o pensamento racional ou adaptativo, típico da consciência. Os símbolos do processo de individuação estariam brotando pelo confronto dos dois tipos de pensamento de sua elaboração criativa.
Considero importante a permanência desses dois tipos de pensamento: o pensamento mitológico permite a sobrevida espontânea da experiência das imagens originais, o pensamento racional é um modo mais consciente, uma tentativa de integração da experiência nova à vida racional cotidiana. Lendo as experiências irracionais de Jung, por vezes inteiramente fora das expectativas da mente consciente, percebemos que a mente racional entra com explicações das experiências numa tentativa de ordenação dessas experiências de forma a se organizarem de forma mais ou menos acessível para a consciência. O recurso simbólico oferece dentro dessa dinâmica um meio termo, in media res, para um caminhar com certa lógica entre o insólito do inconsciente e o já conhecido da consciência.
A VALORAÇÃO DO SÍMBOLO
Nesse aspecto o símbolo adquire uma importância central para a organização orgânica do livro e Jung determina esse fato desde as primeiras reflexões do Liber Primus, quando fala do caminho daquele que virá. Cita palavras do profeta Isaías falando do caminho do Salvador. A interpretação do Jung para o Salvador, é que o Salvador é o símbolo, porque só o símbolo pode abrir caminhos novos.
Mas a interpretação simbólica e a amplificação histórica não esgotam a questão da realidade da alma, central nessa confrontação com as figuras do inconsciente. As próprias figuras se afirmam como reais, do ponto d vista psicológico.
Pode-se citar como exemplo os capítulos finais do Liber Primus, quando ocorre a interação de Jung com as figuras de Elias e Salomé. Depois de toda a surpresa de uma proximidade de um casal tão diferente entre si, um profeta do antigo testamento sendo o pai de uma mulher pagã, responsável pela decapitação de João Batista, ocorre todo um trabalho de amplificação e de interpretação psicológica.
É digno de nota que o próprio Elias não aceite que ele e Salomé sejam símbolos, afirmando que essa é uma colocação racional de Jung que não faz justiça a eles. Elias e Salomé, eles próprios, se afirmam como figuras reais. Aqui se descortina o conceito de realidade psicológica que Jung aprofundará posteriormente em Considerações teóricas sobre a natureza do psíquico (O.C. Vol. 8) obra de 1939, e outras obras de fase posterior de seu processo criativo. A questão teórica dos opostos psicológicos, intensamente trabalhada na pesquisa de Jung sobre os tipos, já encontra na figuras de Elias e Salomé um terreno extenso para pesquisa teórica de Jung. Em um processo secundário racional de elaboração, Jung procura ver em Elias sua função pensamento mais diferenciada e em Salomé, mulher cega, sua função sentimento menos diferenciada. Vejo nessa elaboração racional uma forma da consciência se proteger do poder numinoso das imagens do inconsciente coletivo, pois como o próprio Elias irá afirmar, ele é Salomé não são símbolos, mas têm existência real, assim como são reais os objetos do mundo circundante para Jung.
Também a articulação com o método de amplificação histórica tem seu lugar na figuras de Elias e Salomé. Em enorme esforço de procurar compreender o quase incompreensível das figuras, Jung procura associar figuras históricas de velhos profetas acompanhados de jovens mulheres, o par Velho Sábio-jovem mulher, que aparece no antigo alquimista grego Zózimo e sua sóror Theosebéia, o sábio gnóstico Simão Mago e sua acompanhante, a jovem Helena, assim como em diversos outros pares da história da filosofia, da alquimia, da religião e dos contos de fada. Esses pares falam do eterno fluxo da energia psíquica dentro do processo de transformação psicológica.
Aparecem ainda em diversos pontos da narrativa, vivências surpreendentes que fogem totalmente a qualquer lógica consciente. A abordagem da serpente de Elias, por exemplo. A serpente como que por dinâmica própria subjetiva da imaginação passa de Elias para Jung. Esse processo parece-me fundamental na dialética da consciência com o poder autônomo das imagens. O inconsciente tem um grande poder de fascinação, mas é fundamental a posição dialética da consciência. A consciência daquele que imagina sai fortalecida do processo. A serpente como símbolo básico da libido, passando de Elias para Jung, simboliza o fortalecimento da consciência no processo dialético com as figuras do inconsciente.
Em todo o Livro Vermelho há essa riqueza energética das imagens, mas a posição interpretativa da consciência é fundamental. Nesse momento é importante a não identificação com as imagens. Parece-me que um certo esvaziamento do poder fascinante de Elias aqui é importante, dentro do processo dialético, embora a serpente mantenha sua força, como símbolo da identidade original.
O EMPREGO DE ILUSTRAÇÕES NO LIVRO VERMELHO
Um dos traços de maior originalidade no Livro Vermelho é o emprego de numerosas ilustrações. O estilo dessas ilustrações já é significativo, o estilo em têmpera, expressão medieval de um misticismo profundo e rebuscado. Tem-se a impressão que Jung sentiu que certas experiências seriam de tal forma profundas e misteriosas em seu significado que a linguagem puramente verbal não seria suficiente para dar conta da experiências. Só a ilustrações poderiam apontar para certo caminho.
Tal acontece, por exemplo, no episódio do encontro do deus Izdubar. Jung avança por caminho que parece não ter fim. A cena é de montanhas que se perdem na distância. Jung vê figura que se aproxima ao longe, é uma figura gigantesca, seus trajes são o de herói mitológico antigo de uma sociedade tribal. Jung pergunta quem o viajante é e recebe como resposta que o desconhecido chama-se Izdubar, vem do oriente e viaja ao ocidente para conhecer seus povos e seus costumes. Jung revela que vem do ocidente, fala das cidades e seus habitantes, sua tecnologia, suas máquinas voadoras usadas para viagens distantes. Izdubar sente-se fraco, doente, ao estabelecer diálogo com o ser diminuto, com uma linguagem nova para ele, possuidor de um pensamento científico e racional. As referências de Izdubar são os elementos da natureza, os mitos, as profecias e a magia. Sente fraquejar e teme morrer. Deita-se ao solo extremamente fraco. Jung também teme a morte do herói. Subitamente ocorre algo surpreendente, o herói torna-se diminuto e é colocado por Jung em um ovo, começando a entoar cânticos da antiga Índia védica para restaurar a virilidade. O herói, tempos depois é curado e restaurado e renasce sob a forma do deus órfico Phanes. . Posteriormente, o herói pode ser levado sob sua nova forma até as cidades do ocidente.
O momento da cura de Izdubar pelos rituais mágicos é de tal forma misterioso que Jung lança mão de ilustrações simbólicas, técnicas expressivas não-verbais para descrever o processo. A linguagem racional não tem elementos para expressar o processo de transformação que ocorre nesse momento de cura do deus adoecido, recolhido em forma reduzida dentro de um ovo. Talvez o processo possa apenas ser exposto na forma de ilustrações simbólicas.
Nietzsche declarou que Deus está morto. O processo de cura e restauração de Izdubar, fala ao contrário, da assimilação de um deus antigo ao espaço simbólico interior e sua restauração sob nova forma, a forma simbólica. Jung iria escrever mais tarde, em 1930, no prefácio ao Livro O segredo da Flor de Ouro que os deuses clássicos não morreram, mas renovados, produzem os mais variados sintomas no consultório dos terapeutas.
O emprego das ilustrações fala da abordagem pela linguagem não-verbal. Se desde Anna O. temos a mensagem de que a psicoterapia é uma cura pela fala, nesses inícios da escola junguiana de psicoterapia temos expressados os caminhos de uma cura pela não fala ou por técnicas expressivas diversas.
Um outro aspecto do episódio do herói Izdubar é o próprio nome do personagem. Sabemos hoje que Izdubar é na verdade o antiqüíssimo herói sumeriano Gilgamesh, do épico Gilgamesh, rei de Uruk. O nome Izdubar foi corrigido para Gilgamesh em textos anteriores à escrita do Liber Novus e Jung tinha conhecimento disso. Porque então manteve o nome Izdubar? Essa é mais uma confirmação que os diversos personagens mitológicos, da história antiga, os personagens Bíblicos do antigo e novo testamento que povoam o Livro Vermelho, são na verdade personificações de conteúdos inconscientes do próprio Jung.
O livro vermelho ‘’e também uma vigorosa afirmação da importância da imaginação ativa como técnica expressiva de desenvolvimento pessoal. É o método mais eficaz da aproximação da camada pessoal e subjetiva da psique da camada impessoal e coletiva. Esses dois aspectos da psique se apresentam dissociados e o indivíduo não tem fácil acesso às camadas do inconsciente coletivo que se apresentam com vigor renovador para a consciência.
A QUESTÃO DA PSICOPATOLOGIA E DOS PERIGOS DO INCONSCIENTE
“Mas onde há perigo, cresce
O que salva também”.
Hölderlin.
Entretanto, qualquer aproximação das camadas mais profundas da psique não se faz sem perigos, dos quais o mais freqüente é a doença mental. Mas se aproximar da camada impessoal da psique o indivíduo deve os pés bem plantados na realidade do mundo cotidiano e Jung sabia disso, como psiquiatra experiente, e pelos anos como médico residente do Hospital psiquiátrico cantonal do Burghölzli. Quando da produção do livro Símbolos de transformação, Jung interpretou as fantasias espontâneas de Mrs. Miller como um caso prodrômico de esquizofrenia, como escreveu no subtítulo da obra: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Entretanto, investigações históricas posteriores, principalmente de Shamdasani demonstraram que na realidade a paciente de Flournoy estudada por Jung tinha um ego razoavelmente bem preservado, sem estrutura psicótica. O diagnóstico de Jung, no caso, mostrava-se pessimista em excesso. Essa cautela contra a psicose se revela em Jung mesmo quando das manifestações iniciais do processo intenso de dezembro de 1913, quando da visão do oceano de sangue com a destruição da Europa. Jung temeu o início de um processo patológico. Essa cautela se mostra explicável pelo aspecto ambivalente que as imagens primordiais possuem em si mesmas: se de um lado são o exilir vitae, a água da vida, a salvação, por outro, também são a perdição, a desorientação e a dissolução da personalidade em fragmentos.
A INSPIRAÇÃO GNÓSTICA DO LIVRO VERMELHO
O Liber Novus emerge em período de crise pessoal de Jung, em momento de grandes decisões e tomada de um caminho mais pessoal em relação às instituições da época. O momento de criação da obra expressa aquele instante de Jung chamaria depois de crise de metade de vida, quando a libido investida no mundo externo, faz um turning point, um ponto de virada, e o indivíduo começa a considerar de maneira predominante seus valores subjetivos. Essa crise de meia via, representa no mitologema do herói, o curso do sol ao meio dia, quando ao alcançar o máximo de seu poder de brilho, o sol prepara-se para descer para o ocidente ( palavra derivada etimologicamente do latim occidere, morrer). O ocidente é o local da morte do sol, se o oriente é o local do nascimento. Diversos autores debateram in extenso a crise de metade de vida, Henri Ellenberger, Murray Stein entre outros.
Entretanto, considero importante perceber o Liber Novus como um brotamento da personalidade altamente criativa de Jung, tendo suas origens remontando aos seus questionamentos existenciais e filosóficos desde a infância. É importante lembrar os sonhos e fantasias de infância relatados no livro de memórias, de modo especial o sonho do falo subterrâneo, o pensamento obsessivo da destruição do templo cristão pelo excremento de Deus, o diálogo com a pedra sobre a natureza de sua identidade pessoal. Notamos nessas fantasias e sonhos a presença questões filosóficas e existenciais, profundas interrogações sobre o papel do homem na sociedade e a religião instituída que irão ter continuidade no Livro Vermelho.
Essas interrogações e buscas encontram seguimento posterior ao Liber Novus nos estudos de alquimia, como o próprio autor relata ao final de sua obra. Se o livro propriamente dito é dividido em duas partes, o Liber Primus e o Liber Secundus, Shamdasani propõe a denominação de Liber Tertius para o capítulo Aprofundamentos, que contêm fantasias e imaginações ativas posteriores a 1916 incluindo Os Sete Sermões aos Mortos, um profundo texto de inspiração gnóstica. Os Sermões já apareceram no livro de Memórias, entretanto lá, eram atribuídos a um filósofo gnóstico, Basílides de Alexandria. Agora, Philemon aparece como o verdadeiro autor dos Sermões, fazendo também comentários a cada Sermão.
Há uma íntima associação entre a gnose e a alquimia. Aniela Jaffé sugere uma continuidade da gnose na alquimia que me parece das mais interessantes. É verdade que Jung mergulhou nos estudos gnósticos e percebeu na gnose uma compensação para a unilateralidade do cristianismo. O mito da totalidade sempre dominou o pensamento de Jung a partir de suas vivências durante a elaboração do Liber Novus. O deus gnóstico Abraxas é a representação mais evidente da expressão dos opostos integrados. Abraxas, o deus dos sapos, tem em si os opostos e representa um complexio oppositorum que satisfez Jung em sua busca de superação da unilateralidade cristã. A gnose tendo origem nos primeiros anos da era cristã compensava, de certa forma a unilateralidade da consciência coletiva de então. Entretanto, embora os arquétipos sejam atemporais, suas manifestações simbólicas, quer sejam individuais quer sejam coletivas, ocorrem em tempo dado, e mudam com o tempo histórico. O processo de compensação simbólica ocorre tanto no indivíduo como na cultura.Com a instauração do cristianismo na cultura ocidental, com sua unilateralidade essencial, formas de compensação se estruturaram no inconsciente coletivo e a gnose é uma delas. Há a manifestação de símbolos semelhantes aos da gnose em sonhos do homem contemporâneo, entretanto haveria uma lacuna histórica entre a gnose e o mundo moderno. Jung encontrou na alquimia medieval a solução de continuidade entre a gnose e as produções contemporâneas de sonhos e fantasias. Essa idéia de uma continuidade simbólica no inconsciente seria análoga à idéia antiga de uma aurea catena, a cadeia dourada, uma cadeia de homens sábios que manteria a continuidade simbólica através das gerações.
Se o capítulo Aprofundamentos é um Liber Tertius, a Torre de Bollingen pode ser considerada um Liber Quartus, a expressão tridimensional do Liber Novus. Sabemos o trabalho alquímico envolvido na construção da Torre, o trabalho manual sobre o bloco de pedra e as diversas inscrições e desenhos, algumas deles de significado ainda desconhecido. Entre as inscrições mais instigantes, em uma pedra Jung inscreveu:
Santuário de Philemon, arrependimento de Fausto.
Qual seria o significado dessa misteriosa frase? Aqui estão associados Philemon e Fausto. No Fausto de Goethe há o personagem mitológico Philemon, da estória do casal Philemon e Baucis. Diz o mito que Zeus e Hermes desceram à terra dos homens e na aldeia os estrangeiros disfarçados foram ignorados por todos. Somente o casal piedoso, Philemon e Baucis os recebe. Goethe retoma a estória, e escreve que Mefistófeles destrói o abrigo de Philemon e Baucis, diante de um passivo e inoperante Fausto. O dito de Jung parece indicar a permanente dialética dos opostos, Philemon e Fausto, self e ego dentro da contínua dinâmica do processo de individuação.
BIBLIOGRAFIA
JAFFÉ, Aniela (1972)- From the life and work of C.G.Jung. Londres: Hodder and Stoughton..
JUNG, C.G.- (1928/1993) O problema psíquico do homem moderno. O.C. Vol. X. Petrópolis, Vozes.
JUNG, C.G.- (1911/1986)- Símbolos de transformação. O.C. Vol. V. Petrópolis: Vozes.
SHAMDASANI, Sonu (2010)- Entrevista a Ann Casement no Journal of Analytical Psychology. Vol.55 No.1 , fevereiro, p.35 a p.49.
SHAMDASANI, Sonu (2010): “Introdução” in: C.G. JUNG; Livro Vermelho, ou Liber Novus. Petrópolis: Vozes.
SHAMDASANI, Sonu –(1990). A woman called. Frank, Spring 50, pp. 26-56.
VON FRANZ, Marie-Louise (1975)- C.G.Jung. His Myth in Our Time. Nova York: C.G. Jung Foundation for Analytical Psychology.
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