Walter Boechat
Acaba de ser publicado o tão esperado Livro Vermelho, ou Liber Novus, como o chamou Jung. O livro terminou de ser escrito por volta de 1930 e na época o autor optou por não divulgá-lo devido ao seu caráter extremamente pessoal. Mesmo depois da morte de Jung, em 1961, sua família preferiu manter o livro oculto ao público em geral. Mas agora, depois de mais de dez anos de negociações e preparo, o livro foi lançado com grande sucesso no mundo inteiro.
Pode-se perceber grandes influências na composição do Livro Vermelho: o Zaratustra de Nietzsche, a Divina Comédia, de Dante Allighieri, o Fausto de Goethe. Todas as grandes obras da tradição ocidental compõe o universo cultural de Jung e o influenciaram de certa forma. Mas o Liber Novus é novo e originalíssimo em sua forma, na maneira de sua apresentação e também em conteúdo. Enquanto Nietzsche apregoou a morte de Deus, uma nova ética, a transvaloração de todos os valores, o Livro Vermelho traz a novidade do renascimento do Deus interior, da experiência pessoal do transcendente pela transcendência mesma das instituições. Enquanto Dante Alligieri realiza uma viagem interior de aprofundamento, personificando em Virgílio um guia para o mundo dos mortos, Jung tem múltiplos guias, sendo o mago Philemon é o maior de todos, aquele que centraliza o conhecimento intuitivo transcendente.
O livro tem começo em dezembro de 1913. Jung tem uma visão enquanto viajava para visitar uma parente em cidade próxima a Zurique. Vê toda a Europa coberta de um mar de sangue, com milhares de cadáveres boiando, do norte até a região sul. É uma visão terrível que se repetiu como um aterrorizador sonho acordado. Jung relatou essa visão em seu livro de memórias, dizendo que sentiu uma necessidade premente de compreender o sentido dela. De início pensou que ele próprio, Jung, estava sofrendo uma grave crise psíquica e que aquela visão dizia respeito talvez até a uma doença mental iminente. Só quando pouco tempo depois a Europa mergulhou na primeira grande guerra (1914-1918) com seus incontáveis mortos e o profundo sofrimento para milhões, pode compreender o sentido antecipatório de sua visão. Mas tornou-se claro para ele que as poderosas imagens que se desenrolaram a partir daí em fluxo caudaloso em fantasias e sonhos, falavam também de algo interno, uma profunda transformação interior. Todos essas mudanças interiores aconteciam paralelamente às dolorosas mudanças da cultura européia e mundial.
Em sua vida particular, Jung atravessava um período de mudanças radicais. Havia rompido com Freud afastava-se do movimento psicanalítico que se afirmava gradualmente em toda a Europa. Tendo sido o primeiro presidente da Associação Internacional de Psicanálise (IPA) e tendo colaborado intensamente para o seu desenvolvimento, rompia com a instituição. Aos trinta e oito anos, atravessava então uma típica crise de metade de vida, como ele próprio viria a chamar depois, período da vida marcado por intensas mudanças interiores.
Mas sou de opinião que é um erro considerar o Liber Novus um produto dessa crise de meia idade, dessa entrada na maturidade de Jung. Ao contrário, o Livro Vermelho faz parte de um brotamento espontâneo criativo que o acompanhou desde sua infância. Podemos acompanhar todo esse desenvolvimento criativo através dos sonhos e fantasias do menino e do jovem Carl Jung relatadas em seu fascinante livro Memórias, Sonhos e Reflexões (Editora Vozes).
sábado, 18 de fevereiro de 2012
Sérgio Britto e Jung
Walter Boechat
“E o Sérgio Britto agora virou Estrela...”
Paulo César Brito
Sergio Britto telefonou-me em 2005. Procurava em mim alguém que o ajudasse com os conceitos da psicologia de Jung para a peça Jung e Eu, monólogo de Domingos de Oliveira com a colaboração de Giselle Kosovski sobre Carl Gustav Jung que encenaria meses depois no CCBB. Encontrei Sérgio Britto por diversas vezes em sua casa em Santa Teresa para discutirmos os conceitos fundamentais de Jung, o processo de individuação, o inconsciente coletivo e os arquétipos. Nesses encontros pude descobrir um Sérgio Britto com um discurso vibrante, cativante, puro transporte, a magnética presença de um ator e diretor teatral de personalidade inigualável. Falei sobre os conceitos junguianos, Sérgio demonstrou a íntima convivência com esses conceitos, sua vida sendo plena expressão daquilo que Jung denominou processo de individuação; uma intimidade com os processos internos, uma convivência com as imagens interiores, um trilhar de caminhos tortuosos para a expressão plena do self.
Falou-me com intimidade sobre seus estudos de medicina, muito a gosto da família, mas distintos de seu querer mais autêntico. A poderosa vocação para o teatro já vinha emergindo como expressão do seu self criativo na faculdade, entre os disfarces médicos de sua persona... E contou-me finalmente como o Ator e homem de teatro brotou em sua plenitude e Sérgio pode então construir seu caminho próprio... Eu ouvia a tudo emocionado, constatando que o processo de individuação a que Jung aludira é ainda possível, embora bastante raro...
Sérgio contou-me suas experiências fundamentais. Como conviveu com o preconceito sobre sua orientação sexual e pode integrar em sua vida todos esses aspectos. Ouvindo-o pude perceber a sabedoria da idade avançada convivendo com a inocência e espontaneidade da criança. Parece-me ser essa a maturidade maior. A integração da homossexualidade não se deu sem sofrimento, como me narrou. Falou no rito de passagem do seu processo de individuação em sua tentativa de suicídio, feita de modo automático, cortando os pulsos, após bastante tempo tomando sol na praia de Copacabana. Só depois entendeu os desafios e significados maiores de seu gesto para a integração de sua sombra.
Comentou outro ritual de passagem importante: sua desilusão com a medicina. Ainda estudante, plantonista em maternidade, os médicos estavam ausentes durante a noite. (O que causava grande decepção em Sérgio). Aconteceu um parto emergencial, com apresentação de cócoras. Sérgio não sabia absolutamente o que fazer. Quando deu por si, estava fazendo o parto, que foi plenamente bem sucedido. A enfermeira parabenizou-o, relatando que ficou surpresa ao perceber que Sérgio conhecia aquela manobra de.... (usou um complicado nome em alemão do criador daquela manobra obstétrica). Sérgio comentou para mim, com seu inigualável humor: “foi a minha primeira experiência mediúnica-junguiana do inconsciente coletivo...”
Ao ser perguntado sobre o que eu achava dessa sua experiência, comentei que realmente, em situações extremas, em momentos de transição de vida ou de morte, energias transpessoais podem ser ativadas no inconsciente coletivo, independentes de nossa volição pessoal. Sérgio Britto teria sido um canal dessas forças curativas coletivas. Na verdade, ele o foi durante toda sua vida, imortal ator como foi, sempre um canal perfeito para personagens representantes de imagens arquetípicas do inconsciente coletivo. Ele sempre nos levou às nossas catarses, ás nossas transformações, às nossas curas através de suas performances.
O interesse de Sérgio por Jung vinha já de algum tempo. Essa identificação com as idéias junguianas o levou logo após o êxito da peça Jung e Eu a fazer uma apresentação para a edição de 2006 do conhecido livro autobiográfico de Jung, Memórias Sonhos e Reflexões, pela Nova Fronteira. Nessa apresentação Sérgio conta um pouco de seu acercamento do complexo pensamento do psicólogo suíço:
“Jung via a libido com maior amplitude, acreditando que valores como a espiritualidade, criatividade e nutrição poderiam mover os homens com tanta força quanto o sexo...... Mais uma vez me aproximo de Jung. Por mais que eu tenha sido o ser humano altamente sexual/sensual, minha libido maior, aquela que dominou minha vida acima de tudo, foi sempre minha carreira artística, especialmente a do ator teatral. Encontro no realizar teatral, na procura interna de meu personagem de cada nova peça, um jogo espiritual altamente prazeroso, e no ato de criar um ser novo que não sendo mais eu, e sim alguém que criei dentro de mim, a libido que realiza um orgasmo acima de todos que experimentei em toda a minha vida sexual amorosa.”
(Sérgio Britto, 2006: 11,12)
Tive ainda dois encontros com Sérgio para mim bastante significativos: no primeiro conversamos sobre os aspectos psicológicos da peça de Lars Nören Outono, Inverno que Sérgio encenou no CCBB do Rio de Janeiro de junho a agosto de 2006, com a direção de Eduardo Tolentino. A conversa foi no programa semanal de Sérgio na TV Educativa, “Arte com Sérgio Britto”. O segundo encontro foi um convite meu para Sérgio dar seu depoimento pessoal sobre Jung em Congresso Junguiano promovido no Hotel Glória em 2008. Nesse último encontro Sérgio Britto foi muito aplaudido por uma platéia de centenas de pessoas de todo o Brasil ao repetir trechos de grande intensidade dramática da peça Jung e Eu.
Agora Sérgio Britto se foi, deixando conosco a memória de sua rica presença e criatividade. Mediador de experiências profundas, catalizador de verdades imutáveis, fez do palco o espaço de transformação, catarse e verdade. Com sua perda, só podemos repetir sua reflexão em um último texto seu:
“Agora é hora de esperar com calma e tentando não sofrer as próximas palavras”.
REFERÊNCIAS
BRITTO, Sérgio (2006)- Como encontrei Jung. In: JUNG, C.G. – Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro; Nova Fronteira.
“E o Sérgio Britto agora virou Estrela...”
Paulo César Brito
Sergio Britto telefonou-me em 2005. Procurava em mim alguém que o ajudasse com os conceitos da psicologia de Jung para a peça Jung e Eu, monólogo de Domingos de Oliveira com a colaboração de Giselle Kosovski sobre Carl Gustav Jung que encenaria meses depois no CCBB. Encontrei Sérgio Britto por diversas vezes em sua casa em Santa Teresa para discutirmos os conceitos fundamentais de Jung, o processo de individuação, o inconsciente coletivo e os arquétipos. Nesses encontros pude descobrir um Sérgio Britto com um discurso vibrante, cativante, puro transporte, a magnética presença de um ator e diretor teatral de personalidade inigualável. Falei sobre os conceitos junguianos, Sérgio demonstrou a íntima convivência com esses conceitos, sua vida sendo plena expressão daquilo que Jung denominou processo de individuação; uma intimidade com os processos internos, uma convivência com as imagens interiores, um trilhar de caminhos tortuosos para a expressão plena do self.
Falou-me com intimidade sobre seus estudos de medicina, muito a gosto da família, mas distintos de seu querer mais autêntico. A poderosa vocação para o teatro já vinha emergindo como expressão do seu self criativo na faculdade, entre os disfarces médicos de sua persona... E contou-me finalmente como o Ator e homem de teatro brotou em sua plenitude e Sérgio pode então construir seu caminho próprio... Eu ouvia a tudo emocionado, constatando que o processo de individuação a que Jung aludira é ainda possível, embora bastante raro...
Sérgio contou-me suas experiências fundamentais. Como conviveu com o preconceito sobre sua orientação sexual e pode integrar em sua vida todos esses aspectos. Ouvindo-o pude perceber a sabedoria da idade avançada convivendo com a inocência e espontaneidade da criança. Parece-me ser essa a maturidade maior. A integração da homossexualidade não se deu sem sofrimento, como me narrou. Falou no rito de passagem do seu processo de individuação em sua tentativa de suicídio, feita de modo automático, cortando os pulsos, após bastante tempo tomando sol na praia de Copacabana. Só depois entendeu os desafios e significados maiores de seu gesto para a integração de sua sombra.
Comentou outro ritual de passagem importante: sua desilusão com a medicina. Ainda estudante, plantonista em maternidade, os médicos estavam ausentes durante a noite. (O que causava grande decepção em Sérgio). Aconteceu um parto emergencial, com apresentação de cócoras. Sérgio não sabia absolutamente o que fazer. Quando deu por si, estava fazendo o parto, que foi plenamente bem sucedido. A enfermeira parabenizou-o, relatando que ficou surpresa ao perceber que Sérgio conhecia aquela manobra de.... (usou um complicado nome em alemão do criador daquela manobra obstétrica). Sérgio comentou para mim, com seu inigualável humor: “foi a minha primeira experiência mediúnica-junguiana do inconsciente coletivo...”
Ao ser perguntado sobre o que eu achava dessa sua experiência, comentei que realmente, em situações extremas, em momentos de transição de vida ou de morte, energias transpessoais podem ser ativadas no inconsciente coletivo, independentes de nossa volição pessoal. Sérgio Britto teria sido um canal dessas forças curativas coletivas. Na verdade, ele o foi durante toda sua vida, imortal ator como foi, sempre um canal perfeito para personagens representantes de imagens arquetípicas do inconsciente coletivo. Ele sempre nos levou às nossas catarses, ás nossas transformações, às nossas curas através de suas performances.
O interesse de Sérgio por Jung vinha já de algum tempo. Essa identificação com as idéias junguianas o levou logo após o êxito da peça Jung e Eu a fazer uma apresentação para a edição de 2006 do conhecido livro autobiográfico de Jung, Memórias Sonhos e Reflexões, pela Nova Fronteira. Nessa apresentação Sérgio conta um pouco de seu acercamento do complexo pensamento do psicólogo suíço:
“Jung via a libido com maior amplitude, acreditando que valores como a espiritualidade, criatividade e nutrição poderiam mover os homens com tanta força quanto o sexo...... Mais uma vez me aproximo de Jung. Por mais que eu tenha sido o ser humano altamente sexual/sensual, minha libido maior, aquela que dominou minha vida acima de tudo, foi sempre minha carreira artística, especialmente a do ator teatral. Encontro no realizar teatral, na procura interna de meu personagem de cada nova peça, um jogo espiritual altamente prazeroso, e no ato de criar um ser novo que não sendo mais eu, e sim alguém que criei dentro de mim, a libido que realiza um orgasmo acima de todos que experimentei em toda a minha vida sexual amorosa.”
(Sérgio Britto, 2006: 11,12)
Tive ainda dois encontros com Sérgio para mim bastante significativos: no primeiro conversamos sobre os aspectos psicológicos da peça de Lars Nören Outono, Inverno que Sérgio encenou no CCBB do Rio de Janeiro de junho a agosto de 2006, com a direção de Eduardo Tolentino. A conversa foi no programa semanal de Sérgio na TV Educativa, “Arte com Sérgio Britto”. O segundo encontro foi um convite meu para Sérgio dar seu depoimento pessoal sobre Jung em Congresso Junguiano promovido no Hotel Glória em 2008. Nesse último encontro Sérgio Britto foi muito aplaudido por uma platéia de centenas de pessoas de todo o Brasil ao repetir trechos de grande intensidade dramática da peça Jung e Eu.
Agora Sérgio Britto se foi, deixando conosco a memória de sua rica presença e criatividade. Mediador de experiências profundas, catalizador de verdades imutáveis, fez do palco o espaço de transformação, catarse e verdade. Com sua perda, só podemos repetir sua reflexão em um último texto seu:
“Agora é hora de esperar com calma e tentando não sofrer as próximas palavras”.
REFERÊNCIAS
BRITTO, Sérgio (2006)- Como encontrei Jung. In: JUNG, C.G. – Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro; Nova Fronteira.
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